Especial

Empreendedorismo feminino marca história do Brasil

Tatiana Carvalho: acho cruel romantizar histórias de exceções | Crédito: Joyce Prado
Elas, especialmente as negras e de classes mais baixas, desafiam barreiras para garantir sustento e independência. Hoje, a luta continua, com mães liderando a maioria dos negócios

No Dia das Mulheres é comum que histórias de superação ganhem destaque. E que, entre essas histórias, o empreendedorismo feminino apareça como lugar de luta e resistência, especialmente das mulheres nas classes sociais mais baixas. Todas merecem reconhecimento e homenageiam àquelas que abriram caminho sob a pena de enfrentarem preconceitos, violência, humilhações públicas e apagamento histórico.

No Brasil Colônia, as mulheres já empreendiam. Escravas – chamadas ganhadeiras – e mulheres brancas pobres fabricavam e vendiam seus produtos nas ruas das cidades garantindo recursos para a sobrevivência de suas famílias e, no caso das escravizadas, a compra da própria alforria e a de outros membros da comunidade.

Para o pesquisador sênior da Universidade do Estado do Maranhão (UEMA) e professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Luiz Carlos Villalta, embora o termo empreendedorismo não se aplique dentro de uma sociedade escravista, com pouca mobilidade social e na qual a desigualdade de direitos estava dentro do ordenamento jurídico, essas mulheres – negras e brancas – não eram minoria e tinham peso na economia cotidiana daquela sociedade, embora invisibilizadas.

“A escravidão tira possibilidade do empreendedorismo, mas isso não impede que reconheçamos que havia mulheres vivendo naquela sociedade fora do guarda-chuva masculino. Elas se viam obrigadas a conseguir sobreviver. Um recenseamento em Vila Rica (Ouro Preto), em 1804, revela muitas mulheres como a ‘chefe de fogo’. Com os homens ausentes, elas tinham alguma fonte de renda para subsistir, com pessoas sob a guarda delas, e isso não era exceção à regra, elas chefiavam 35% dos domicílios. Elas estavam na categoria dos ‘desclassificados’ – o que não são senhores e nem escravos – e aquela sociedade via com muito maus olhos aquelas pessoas”, explica Villalta. 

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O “empreendedorismo feminino” daquela época segue ecoando pela economia do Brasil contemporâneo. A resiliência das mulheres do século 19 continua necessária 200 anos depois.

A Pesquisa Irme de 2023, realizada pelo Instituto Rede Mulher Empreendedora (Irme), com apoio da Rede Mulher Empreendedora e execução do Instituto Locomotiva, revela que 70% das empreendedoras são mães. Ao todo, 55% das mulheres empreendedoras abriram seus negócios por necessidade. 75% delas são das classes DE, 63% possuem até o ensino fundamental, 63% começaram a empreender depois da maternidade e 61% são negras.

E é justamente no sentido dar visibilidade às mulheres negras e seus empreendimentos e trabalhar contra o apagamento histórico, que a professora do Centro Universitário Una e presidente da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), Tatiana Carvalho, defende que as histórias precisam ser contadas por essa parcela da população.

“Fiz vestibular em 1992, quando o Collor acabou com a Embrafilme, e não tinha como pensar em cinema. Além disso, não havia exemplos em quem me inspirar. Então fui para o jornalismo por causa da Glória Maria. Só percebi o cinema como possibilidade nos anos 2000. É preciso haver condições para que o cinema seja sonhado e, sobretudo, que haja um sentido de pertencimento ali. Eu acho muito cruel romantizar histórias de exceções porque elas confirmam a regra. As histórias de superação não me parecem os melhores exemplos porque elas apontam para a crueldade da exclusão”, analisa Tatiana Carvalho.

Fazeres ancestrais garantem renda e autoestima para mulheres empreendedoras

Daniela Luiz
Daniela Luiz: sofri com episódios de machismo e racismo | Crédito: Divulgação Ponto Sustentável


Também de acordo com a Pesquisa Irme de 2023, alimentação e bebidas (20%), beleza e cosméticos (15%), artesanato (13%) e vestuário e acessórios (12%) são os principais ramos de atuação das mulheres.

96% das empreendedoras afirmam que utilizam a internet para o trabalho. Nove em cada 10 mulheres utilizam as redes sociais nas operações on-line de seus empreendimentos, sendo o Instagram a principal rede para venda e divulgação.

Foi na cozinha que a especialista em branding Fabiana Martins encontrou o seu propósito de vida e um negócio para chamar de seu: a Polvilha. Depois de ver um programa de culinária na TV ensinando a fazer bolo pão de queijo com muçarela, ela não se conteve e voltou aos cadernos de receitas herdados das avós para criar uma receita que honrasse os ingredientes e a tradição mineira. Atualmente, a Polvilha opera por delivery e retirada no bairro Prado (região Oeste), com fornadas às quartas, sextas e sábados.

Fabiana Martins
Fabiana Martins encontrou propósito na cozinha | Crédito: Divulgação Polvilha

“Na época, eu trabalhava com moda e estava cansada. Comecei a fazer testes e levava para os amigos experimentarem. Quando vi que aquilo poderia ser um negócio, em 2017, chamei uma amiga. O negócio deu certo, mas a sociedade não. Acabei indo trabalhar com outras coisas. No final de 2023 voltei aos testes e lancei a Polvilha em maio de 2024. Nunca é fácil empreender e, para uma mulher, sempre existem barreiras a mais. Faço tudo sozinha e ainda não dá pra viver só da Polvilha, mas o objetivo de ter uma loja física e uma equipe formada por mulheres está cada vez mais próximo”, avalia Fabiana Martins.

No ateliê “De Nós & Vocês” – especializado em confeccionar artesanato sustentável com peças em fio de malha e corda de algodão – a artesã Fernanda Guimarães também tem nas redes sociais o seu principal canal de vendas. E tem o apoio fundamental do marido para se realizar como empreendedora após a vida quase toda como celetista.

Fernanda Rodrigues
Ser negra impõe mais dificuldades, diz Fernanda Guimarães | Crédito: Divulgação De Nós & Vocês

“Me inspirei em uma reportagem na TV, mas eu não sabia crochetar. Propus uma parceria a uma vizinha e começamos. Com o tempo aprendi e passei a fazer tudo sozinha. Fazer de tudo um pouco é desgastante porque a mulher não abre mão de todas as demais atividades que ela já tinha. Pensei em desistir e só consegui porque tenho o apoio do meu marido, que sustenta a casa. Agora estou sendo vista, mas nem todo mundo consegue suportar esse processo. Começar do zero é muito difícil, ser negra impõe mais dificuldades. O empreendedorismo feminino é lindo, mas não é romântico como dizem”, analisa Fernanda Guimarães.

No interior, empreendedorismo feminino enfrenta falta de representatividade

Se nas grandes cidades as mulheres ainda enfrentam toda sorte de preconceitos e estereótipos, no interior a situação se agrava principalmente pela falta de referências.

Formada em Ciências Econômicas em Teófilo Otoni (Vale do Mucuri), Daniela Luiz Silva sentiu a falta de exemplos próximos de mulheres, especialmente negras, que tivessem conseguido empreender na área de tecnologia. Mesmo buscando apoio na universidade, ela não deixou de sofrer com episódios de machismo e racismo escancarados e com as versões veladas e institucionalizadas desses preconceitos dia após dia.

Hoje, ela é a CEO da Ponto Sustentável. O aplicativo, idealizado por ela, tem como objetivo oferecer uma plataforma completa de serviços para o descarte adequado de resíduos. Busca, também, ser uma referência em soluções sustentáveis, fornecendo informações e recursos para gestão, descarte e educação ambiental.

“A Ponto Sustentável não nasceu dentro da universidade, mas fui buscar apoio lá por considerar que seria um lugar com a mentalidade aberta. Na verdade, encontrei um ambiente muito masculinizado e onde pesou o fato de eu não ter quem me indicasse. Não encontrar mulheres e, muito menos, negras em cargos de gestão, com certeza, foi um desmotivador. Hoje eu quero ser uma referência para as meninas que são do interior. Quero ter o papel de tornar o empreendedorismo feminino menos difícil do que foi e continua sendo para mim”, reflete Daniela Luiz Silva.

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