Entrevista: gastronomia mineira brilha no restaurante Padre Toledo

Já são mais de 50 anos em um dos endereços mais representativos do que significa a mineiridade. Instalado desde 1970 na rua Direita, em Tiradentes (Campo das Vertentes), o Restaurante e Taberna Padre Toledo mantém a gastronomia mineira no centro da arte do bem atender, tão cara aos mineiros.
A culinária dos tropeiros e das fazendas se apresenta em uma profusão de entradas, pratos quentes e sobremesas de tirar o fôlego de frente para a magnífica Serra de São José.
Nesta edição de Gastronomia, a turismóloga e chef de cozinha Fernanda Fonseca, membro da terceira geração de mulheres no comando do Padre Toledo, conta um pouco dessa história e dos planos da casa que já teve uma filial em Belo Horizonte.
Raros são os negócios que chegam aos 55 anos. Restaurantes assim são mais raros ainda. Como conciliar tradição e inovação para agradar os velhos clientes e conquistar novos?
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Esse é, realmente, um grande desafio. Eu e meus irmãos estamos há cinco anos, junto com meu pai, à frente do negócio. De lá para cá, fizemos algumas inovações no cardápio. Mas eu te falo que foram inovações de 25% no máximo, com uma revisão e engenharia de cardápio, colocando, principalmente, pratos individuais, outros empratamentos, mas sem jamais perder a nossa essência. Nós sempre vamos manter um compromisso de mostrar a autenticidade da comida mineira. Aquela comida servida na panela de pedra, que sai borbulhando, que é feita com receitas que vieram da minha bisavó, continua. Temos, hoje, pessoas que estão com a gente há 20 anos e que mantêm esse saber, as receitas originais. Houve, sim, necessidade da gente inovar alguns pratos, principalmente para jantares, mas a gente continua no mesmo tom, na mesma linha de ingredientes mineiros, frescos, de pequenos produtores, que cultivam produtos um pouco esquecidos, como, por exemplo, a taioba. Então, são inovações que não são necessariamente tecnológicas.
Eu tenho um pouco de cuidado ao falar da cozinha mineira contemporânea. Acho que muitas mudanças que são feitas podem até acabar com ela. Devemos ter muito cuidado com o patrimônio que a gente tem, que é a cozinha mineira, ao inovar demais, achando que está fazendo o bem e, às vezes, não. Então, no nosso caso, foi esse um desafio. Trouxemos novas sobremesas também, além do buffet de doces mineiros. Então é isso: aliar, mas sem jamais perder essa essência e perder a centralidade do nosso negócio, que é a cozinha mineira com ingredientes típicos e tradicionais.
Mas respeitar e trazer a tradição para os dias atuais pode ser muito moderno, não é? E outra grande modernidade do Padre Toledo desde sempre é justamente esse comando das mulheres. A sua avó começa numa época que Tiradentes ainda não tinha sido “redescoberta” pelo Brasil e pelo mundo. O jeito feminino de fazer as coisas também modifica a gestão?
Sim, a cozinha mineira é feminina na sua essência. Ela começa dentro de casa com as mulheres vendendo para complementar o orçamento doméstico. E foi essa a história da minha família. Minha bisavó era uma quitandeira muito conhecida, vendia os doces fora, em São João del-Rei, para criar os três filhos. Minha avó da mesma forma. Meu avô era caixeiro viajante e ela precisava aumentar a renda para criar quatro filhos. Em 1970, a minha avó se viu recebendo algumas pessoas em casa – meu avô era prefeito na época, e não tinha um lugar para receber. Ela percebeu que aquilo era um gasto. E aí que ela teve a ideia do restaurante. As pessoas falavam que ela tinha enlouquecido. Nos anos de 1970 a cidade ainda estava esquecida, era bem preservada, mas não tinha turistas. Ela foi uma das primeiras a abrir um negócio de porta aberta no Centro Histórico, numa época em que não se falava em gastronomia e muito menos em gastronomia mineira. E isso foi dando certo e, em 10 anos, mais ou menos, ela comprou o imóvel, e aí teve um projeto de expansão, e os filhos todos se envolveram com o negócio. Ela foi uma pioneira em abrir esses caminhos da gastronomia na cidade e principalmente em manter a tradição mesmo depois chegando muitos restaurantes de comida internacional. Ela se manteve muito firme em não mudar, em não sair daquele lugar, não ceder espaço para agradar uma tendência. E a gente continua tentando seguir esses passos. Aprendemos muito com ela ainda.
Vamos falar, então, sobre o ponto. O restaurante ocupa um belíssimo casarão de 1722. Quais as obrigações que vocês têm em relação à preservação do imóvel e como driblar as restrições para que o negócio funcione?
É um casarão século 18, bem preservado, com as suas paredes praticamente originais. Muita história se passou por ali. O casarão é um dos nossos principais ativos. Estamos sempre modernizando. Modernizando e voltando para trás. No inverno teremos uma surpresa para dar mais aconchego, a sensação de estar dentro de uma casa de vó.
Percebo sempre o Padre Toledo muito integrado com os eventos da cidade. Qual a importância dessa participação para além de simplesmente estar aberto e receber as pessoas durante os eventos?
A história da gastronomia em Tiradentes se confunde com a nossa história. Então, é um processo gradativo. Além de muitas outras coisas, o Padre Toledo foi um formador de mão de obra. Muitos restaurantes que existem na cidade hoje são de pessoas que trabalharam conosco. Isso gera um sentimento de estar dentro da história. Então, por exemplo, estamos desde as primeiras edições da Mostra de Cinema. Os eventos começam, geralmente, sem muito apoio. Então, a gente faz questão de apoiar os eventos que valorizem a cidade, eventos que têm alma também. A Mostra de Cinema é um desses grandes exemplos.
A joia da coroa é o restaurante, mas vocês são muito mais do que isso. Tem a pousada, a padaria e a fazenda. Como esses empreendimentos se relacionam?
Isso vem muito dessa tradição, a mistura de povos que nós somos, dessa identidade criada dos povos originários, com os africanos, com os portugueses. Então, minha família é muito essa mistura que nos dá essa riqueza, e a abertura para o receber. Então, está no DNA de empreender por necessidade. A minha avó teve essa visão: começou com o restaurante, um tempo depois, abriu a padaria, que até hoje está lá, a primeira de Tiradentes, voltada para as quitandas e com um café maravilhoso. Depois veio a pousada e a fazenda fornecendo alguns insumos para a gente, e a cachaça que a gente só vende lá. Nossos avós tiveram uma sabedoria muito grande fazendo com que a gente amasse a coisa. Queremos seguir valorizando cada vez mais e inovando no que for possível, sem perder a alma.
Vocês têm, desde 2022, uma unidade de delivery em Belo Horizonte. Quando terão um salão aberto?
Era um delivery e a gente acabou fechando. Era um desafio muito grande, inclusive de mão de obra. Então, para não correr o risco de não entregar uma experiência fidedigna ao que a gente tem em Tiradentes, e correr o risco de nos matar, preferimos parar.
Mas também é uma sabedoria entender que não deu certo e que é hora de parar, não é?
Sim, no negócio a gente tem que ter paixão sim, mas ela não pode nos cegar. Eu não me permito cometer um tipo de erro desses. É preciso ter racionalidade para recomeçar ou pensar novos rumos.
A ideia de um restaurante de salão de porta aberta aqui em Belo Horizonte ainda está nos seus planos?
Pode ser. Estamos reformulando a rota para os próximos anos, mas hoje o foco é melhorar algumas estruturas e comemorar bastante nossos 55 anos, aproveitando que a minha avó está com a gente. Com essa entrevista, damos o pontapé aos 55 anos do Padre Toledo.
A culinária sempre revela muito a identidade e a história de um povo. E de acordo com dados da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo, a gastronomia é o principal atrativo para atrair turistas para Minas. O que a culinária mineira tem que outras não têm?
A comida mineira é muito identitária, está misturada com a história do desenvolvimento brasileiro, da nossa formação enquanto povo. Minas Gerais tem muito essa essência. Então o que é luxo, o que é gourmet? O que não é moderno? A comida cozida na panela de pedra não é moderna, não é contemporânea? Você saborear uma comida que há 300 anos está sendo servida, compartilhada, sendo motivo de encontros e até de revoluções não é um luxo? Não é à toa que o nosso restaurante tem resistência até no nome. Padre Toledo foi um inconfidente corajoso, um homem que foi muito importante, embora muita gente não saiba. Então, nós vamos continuar com a originalidade, contando essas histórias afetivas, familiares e também seculares de Minas Gerais nas nossas receitas.
A cozinha mineira se caracteriza por muitos ingredientes locais e por técnicas próprias. Qual o maior requinte da cozinha mineira?
Essa pergunta é difícil, mas para mim, é a questão do alho, sal, cebola e o pinga-e-frita mineiro que ninguém faz igual. Esse jeito de fazer é uma herança que vem desde que a gente é pequenininho, na beirada de um fogão. Eu acho que o feijão tropeiro, por exemplo, na sua originalidade, da forma real, é universal no nosso planeta Minas Gerais.
E qual o seu prato preferido?
Eu gosto muito dessa comida do dia a dia. Para mim nada substitui o arroz, feijão, angu, couve ou uma taioba. E uma carninha de porco, de preferência uma costelinha. É uma comida que eu posso comer todos os dias da minha vida. Outro prato que adoro, que é inspirado num prato português, é o frango ao molho pardo.
Se não for para comer comida mineira, qual você escolhe?
São duas: a primeira é a cozinha amazônica. Eu posso passar a vida tomando um tacacá. Essa é a comida original do Brasil. E a outra é a comida baiana. Eu já morei fora, adoro outras gastronomias, aprendi muitas técnicas em outros países, mas a cozinha brasileira é de uma beleza, de uma riqueza, de um sabor, de uma cultura que a gente tem que valorizar mais. Então eu fico com essas três, mas, lógico, é cozinha mineira todo dia.
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