Para conciliar trabalho e maternidade, mães migram para o empreendedorismo

Marina foi demitida dois meses após ter um filho. Paula deixou de ver sentido no trabalho formal depois de engravidar. Érica encontrou uma forma de levar os filhos consigo na função – um deles, ainda na barriga. Com as carreiras atravessadas pela maternidade – ou vice-versa – essas três mulheres, localizadas em diferentes contextos sociais, encontraram no empreendedorismo uma forma de conciliar o acolhimento a seus filhos e o trabalho.
A realidade que encontraram e que ainda persiste, no entanto, não é nada animadora. A 2ª edição da pesquisa “Parentalidade e Empreendedorismo” do Sebrae Minas, divulgada na última semana, mostra que cuidar do próprio negócio contribui para sobrecarregar ainda mais essas mulheres.
O estudo ouviu, entre os meses de março e abril deste ano, 892 empreendedores de Minas Gerais, entre homens e mulheres, sendo que 691 deles possuem filhos. E constatou que 74% das mães que empreendem também são responsáveis pelo preparo das refeições da casa todos os dias, enquanto, entre os homens, somente 39% dos pais fazem o mesmo.
Essa discrepância se repete também nos cuidados com a casa e com os filhos:
- 69% das mães realizam tarefas domésticas todos os dias, enquanto 30% dos pais fazem o mesmo.
- 68% das mães são responsáveis pela higiene diária dos filhos.
- 49% delas fazem as tarefas escolares com os pequenos.
A analista do Sebrae Minas Izabella Siqueira explica que a desigualdade de gênero nas tarefas domésticas é, ainda, herança muito forte na nossa sociedade.
“Ainda há muito essa cultura da mulher cuidadora e do homem provedor. O que a pesquisa mostra é justamente essa sobrecarga que há quando a mulher decide empreender. Antes de entrar no mercado de trabalho, ela era responsável por esses cuidados com a casa e com os filhos, mas, depois que ela entrou, seja no regime formal por CLT ou no empreendedorismo, não houve uma redistribuição das tarefas. Ela continua responsável pela casa e pelos filhos, além de sair para trabalhar ou cuidar do seu negócio”, analisa.
Quando o recorte de gênero encontra o racial, o filtro se afunila ainda mais. A professora de dança Érica Priscila de Araújo, dona do estúdio Dayo em Belo Horizonte, se lembra quando começou a trabalhar com dança levando a sua filha Eloah junto, hoje com 8 anos. Érica começou a empreender em 2017, seguindo a sua vontade de atuar nessa área. Mas até hoje encontra dificuldades para manter o seu negócio.
“Depois da pandemia houve uma baixa nas aulas, e as pessoas acabaram demorando a retornar. Desde que a Lolô nasceu eu trabalho com dança e ela sempre esteve presente, mas sinto que ainda estamos nos colocando novamente no mercado. Por um lado, é mais fácil conciliar a maternidade com o trabalho assim, porque eu ‘faço’ meus horários e consigo passar mais tempo com ela. Ao mesmo tempo, não consigo fazer tudo o que o trabalho me demanda como se eu não tivesse filhos”, comenta.

Érica assume todas as funções no seu estúdio, desde a divulgação, passando pela preparação das aulas, as questões administrativas e financeiras, até ministrar as aulas. Ela ensina danças de vários estilos, como dança de salão, twerk, chair dance, estiletto, forró, samba, dentre outros ritmos.
Com uma gestação de seis meses do irmãozinho da Lolô, Érica continua administrando o próprio negócio e dando aulas de dança. Na gestação da Eloah ela também deu aulas até os últimos dias antes do parto.
“É bom porque a gente mexe bastante a pélvis. Trabalhar por conta própria sendo mãe é mais difícil porque a minha demanda é maior do que a de quem não tem filho. Infelizmente, não tem como eu ficar por conta só do trabalho. A gente fica sempre na inconstância, e acaba tendo que trabalhar mais do que alguém que não tem filhos. Além disso, tem aquela culpa de não conseguir fazer tudo o tempo todo, e eu me cobro muito. É uma luta, até por ser uma mulher preta e mãe solo [no caso da Eloah], as oportunidades acabam sendo menores pra gente e os julgamentos, maiores”, observa.
Negócios de mães empreendedoras têm lucro menor
Em um cenário de mães com múltiplas jornadas e pais que raramente assumem as tarefas da casa, as mulheres dificilmente vão conseguir os mesmos lucros que empreendedores homens, sejam eles pais ou não.
“Com isso, essa mãe não consegue dedicar tanto tempo ao negócio quando comparada a outros grupos que não têm filhos, e inclusive aos pais empreendedores, que conseguem ter mais tempo para o seu negócio. Por isso, o lucro dessas mães, muitas vezes, não acompanha o de outros empreendimentos. E cuidar de um negócio é muito difícil por si só, exige uma dedicação intensa. Essa sobrecarga em cima da mãe não ajuda com que ela se estruture para o empreendedorismo”, explica a analista do Sebrae, Izabella Siqueira.
Para a maioria das mães (72%) ouvidas pelo Sebrae Minas, os motivos para abrirem o próprio negócio é a autonomia e flexibilidade que isso traz, e não a possibilidade de alcançar uma renda satisfatória. Até porque, em 67% dos casos, a renda proveniente do negócio dessas mães não é suficiente para arcar com as despesas da casa e da família.
Amor materno dita a escolha pelo empreendedorismo
Mesmo com todas as dificuldades impostas e as perspectivas baixas de lucro, o empreendedorismo é a forma que essas mulheres encontram de estarem próximas aos seus filhos pequenos, acompanhando o crescimento e o desenvolvimento deles em seus primeiros anos de vida.
Não por acaso, 67% das mães empreendedoras ouvidas pelo Sebrae em Minas Gerais abriram o próprio negócio após terem filhos. Para 69% das entrevistadas, os filhos foram fator determinante para empreender. Já entre os homens, esse percentual cai para 49%.
É o caso da empreendedora Paula Pessoa, que se viu impossibilitada de continuar no mercado formal de trabalho após o nascimento da sua filha Geovana, hoje com 5 anos.
“Eu trabalhava havia 12 anos em um escritório de transmissão de energia em Belo Horizonte, como analista contábil, e engravidei em 2018. Quando voltei a trabalhar, não era a mesma funcionária. Alguma coisa mudou. Eu queria ficar mais perto da Geovana, ficar longe dela me trazia angústia. Não tinha coragem de pedir demissão por causa da estabilidade, mas quando fui mandada embora em 2019, foi um alívio”, lembra.
Aconteceu em plena pandemia. Com as pessoas restritas em casa e podendo acompanhar o desenvolvimento da filha pequena de perto, Paula encontrou uma forma de conciliar a maternidade com o trabalho, quase fundindo as duas coisas.
“Queria oferecer brinquedos e coisas diferentes para as crianças que estavam em casa na época da pandemia. Comprei um brinquedo para a Geovana chamado triângulo pikler, e quando postei uma foto na minha rede social, uma mãe me perguntou se eu alugava. Eu respondi que sim, e comecei a trabalhar com isso”, explica.
Brinquedos como este permitem que a criança seja protagonista da brincadeira. Alguns são articulados, outros possuem encaixes e peças variadas para que as crianças possam brincar como quiserem.

Hoje, a Criarmente é referência no aluguel de espaços lúdicos para brincar em festas, as chamadas “ludotecas”. Até um ano atrás, Paula era a famosa “eupreendedora” e fazia tudo sozinha, desde a montagem dos brinquedos nas festas até a monitoria das crianças. Atualmente, ela conta com um grupo de monitoras que auxiliam nos cuidados com os pequenos nas festas. Por mês, a empresa realiza cerca de 30 eventos com espaços montados para crianças.
“Minha equipe tem gente da fisioterapia, da área médica, babás. É muito importante para mim que as pessoas aqui saibam lidar com as crianças. Por isso, também, faço treinamentos periódicos com eles”, conta.
Demissão após licença-maternidade é recorrente
A pesquisa “Mulheres perdem trabalho após terem filhos” da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getulio Vargas (FGV EPGE), aponta que quase metade das mulheres que tiram licença-maternidade saem do mercado de trabalho meses depois, sendo que, na maioria dos casos, a debandada acontece sem justa causa e por iniciativa do empregador. Foi o que aconteceu com a empreendedora Marina Fernandes.
Por cerca de três anos, ela atuou como gerente de marketing e vendas em uma farmácia de medicamentos especiais, mas também exercia outras funções para auxiliar na prosperidade do estabelecimento, como embalar os produtos e atender os clientes. Quando engravidou, Marina continuou trabalhando presencialmente até a véspera da gestação. O combinado era que, após o nascimento do pequeno Nilo, hoje com 7 meses, ela continuaria exercendo a sua função de casa para conseguir conciliar os cuidados com o filho pequeno e o trabalho.

“Um mês após o meu filho nascer, meu chefe me ligou pedindo para que eu retornasse ao trabalho presencial. Meu contrato era como PJ e, como eu não pude deixar meu bebê sozinho para trabalhar, ele encerrou o meu contrato. Foi uma notícia péssima, fiquei desesperada, porque tinha acabado de ter um bebê que demanda custos, e eu ia ficar sem um salário”, lembra.
Nesta situação, a saída que encontrou foi tirar um sonho antigo do papel: o de empreender. Foi assim que, quase junto com o Nilo, nasceu a Nina Basic Store, comércio on-line de moda atemporal, básica e chique. “São roupas confortáveis que podem ser usadas em todas as estações e vestem corpos diversos de mulheres. Hoje, eu me sinto privilegiada, porque poucas mulheres têm a oportunidade de trabalhar de casa e ficar com seu neném”, conta.
Empreender deveria ser, de fato, uma escolha, diz especialista
Cofundadora da Chicas, consultoria com foco em estratégias para equidade de gênero, e professora da PUC Minas Sabrina Mendes lembra que mesmo as mães que não são demitidas enfrentam dificuldades ao se manterem no emprego.
“O que o mercado faz, hoje, é tratar aquela mulher como se ela não tivesse uma vida para ser responsável. E aí ela tem que ignorar que isso existe e continuar atuando da mesma forma, sendo que o papel da mãe é fundamental para a sociedade como um todo, inclusive, para as empresas. Afinal, são as mulheres que produzem mão de obra para o capitalismo continuar funcionando”, observa.
Ela acredita que, mais do que taxar o empreendedorismo como única saída para maternar nos dias de hoje, é preciso reconhecer as diferenças e necessidades das mulheres trabalhadoras que são mães. E dar a elas também a estrutura necessária para que “continuem exercendo o seu potencial profissional, sem deixar de exercer o seu papel como mãe”.
“No Brasil, a gente vê de maneira bem crônica a questão do empreendedorismo por necessidade. É desafiador porque temos a ilusão de que é um lugar de mais leveza e flexibilidade, quando na verdade dá muito mais trabalho empreender. O que acontece é que as mães empreendedoras acabam arcando com um trabalho maior, tendo já outro trabalho enorme que é o de cuidar, para conseguir ter alguma flexibilidade que não encontram dentro das empresas regulares no mercado formal”, explica.
O ideal, segundo a especialista, é que o empreendedorismo seja, de fato, uma escolha. E não a falta dela. “Eu acredito muito mais que a gente precise resolver o problema da estrutura, para que a estrutura comporte as mães. E não só que as mães se virem por conta própria lá fora. Quando a gente pinta esse empreendedorismo de rosa, como se fosse algo muito fácil e que qualquer mãe consegue, isso também reforça a exclusão”, analisa.
Ao parar de “olhar para as mães como extraterrestres”, a sociedade e as empresas têm a ganhar, segundo Sabrina Mendes:
“É preciso trazer a perspectiva de valorizar e reconhecer o trabalho de cuidado das mulheres. E as empresas também precisam se responsabilizar pelo contexto neoliberal que defendem, onde há a exclusão das mães do mercado de trabalho, porque isso causa problemas estruturais como a pobreza e a redução de IDH . E em termos reputacionais, os exemplos positivos, até porque são raros, acabam repercutindo bem para a empresa e gerando um grande valor para a marca”.
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