Projeto 1904/24 é ilegal: entenda a posição da OAB e os riscos de retrocessos

“PL da Gravidez Infantil, “do Estupro” ou “do Aborto”. Esses são alguns dos apelidos do Projeto de Lei 1904/24 que tramita na Câmara dos Deputados desde o dia 17 de maio de 2024. A matéria tem causado polêmica em todo o País e tramita sob regime de urgência.
Depois de mais de uma semana de repercussões negativas, manifestações de instituições, organizações, movimentos sociais e sociedade civil com posicionamentos contrários e técnicos acerca, inclusive, da ilegalidade da proposta, a Câmara dos Deputados mudou o discurso. A Presidência da Casa criou uma comissão de debate com representantes de todos os partidos e a votação ficou para o segundo semestre.
No entanto, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já considera ilegal a proposta e recomenda seu arquivamento imediato. Na última segunda-feira (17), o Conselho Pleno do Conselho Federal aprovou um parecer, votado pelos 81 conselheiros federais, que declarou inconstitucional o PL 1904/2024.
A OAB/MG tem a mesma posição: “Seguimos a orientação do nosso órgão maior e entendemos que o PL 1904/24 é inconstitucional, um retrocesso aos avanços conquistados pelas mulheres, fundamentais para que uma sociedade democrática se estabeleça. Nosso conselho já avaliou que não existe base constitucional neste projeto e, por isso, ele deve ser arquivado”, declara a integrante da Comissão de Enfrentamento à Violência contra Mulheres da Ordem dos Advogados (OAB/MG), Isabela Murça.
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Para a advogada, o PL pretende criminalizar as vítimas do aborto, o que é inconstitucional. A especialista explica que por motivos de vulnerabilidades variadas, muitas vezes as meninas chegam ao procedimento após a 22ª semana de gestação. A especialista diz que enquadrá-las como homicidas, com pena de 6 a 20 anos, é inverter a lógica da prática criminal. Isabela Murça pondera, ainda, que só de ser apresentado, o PL já vulnerabiliza esse público perante à sociedade, tendo em vista que a proposta prevê penas para as vítimas maiores que as estipuladas aos agressores. Isso sem falar que não contempla nem o risco de morte das crianças e mulheres. Ou mesmo os casos de feto anencéfalo, já contemplados em lei. Para a advogada, o projeto fomenta a cultura de violência sexual no País e está fora da realidade do Judiciário brasileiro.
“A cada oito minutos uma menina é estuprada no Brasil. Se a metade engravidar e deixar para fazer o aborto após a 22.ª semana de gestação, vamos viver em um País que prende uma média de 16.200 crianças estupradas por ano?”, questiona a representante da OAB-MG.
A também advogada e membro do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 – GT Agenda 2030, Juliana César, complementa que os retrocessos dos direitos femininos que o PL 1904 traz provocam ainda prejuízos para os compromissos assumidos com ONU na Agenda 2030, suas metas, entraves no desenvolvimento das políticas públicas, serviços do governo e perdas para diversos setores econômicos. E o pior, não apresenta, de fato, soluções para a saúde sexual e reprodutiva e, menos ainda, na redução ao abuso e violência sexual contra crianças e mulheres.
“Esse PL é um descalabro, não aponta a verdadeira intenção de melhorar a nação, de fazer um avanço em relação ao direito de todas as pessoas que gestam. E não tem legalidade para existir”, indigna-se.
Juliana César reforça que existem outras pautas urgentes e prioritárias para os deputados federais que poderiam otimizar suas legislaturas em benefício da nação se valorizassem as mulheres. “Existe uma grande mobilização dentro do Congresso Nacional por iniciativas que restringem os direitos das mulheres em nome de uma proteção da vida e da família que não corresponde à realidade”, critica.
Anuário de Segurança Pública
A advogada destaca dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, que mostram como a cascata dessa falta de valor do feminino na sociedade culminam em políticas públicas ineficazes. Segundo o Anuário, mais de 80% das vítimas de violência sexual são crianças e adolescentes, sendo 60% das vítimas meninas de até 13 anos pretas e pardas. E o agravante: pelo menos 70% desses acontecem dentro de casa. E reitera que o PL do aborto é mais um exemplo estarrecedor.
“O reconhecimento da gravidez com agressor familiar é comum e mais demorado. Só 4% das cidades têm estrutura para um aborto legal. Quando as vítimas conseguem acessá-lo, ainda há entraves. Exigência ilegais de boletim de ocorrência ou escuta do coração do bebê por parte de profissionais contrários à prática são exemplos de absurdos que ocorrem. Precisamos é acabar com essas ilegalidades degradantes. E não aumentar a tortura com um PL aviltante à toda a sociedade brasileira”, indigna-se a representante do GT Agenda 2030.
Realidade cruel
Um caso bem perto da capital mineira comprova essa realidade. J.O.T, 22 anos, foi estuprada diversas vezes pelo padrasto e engravidou aos 11 anos. Ela desconhece a proposta do PL 1904. Trabalha 14 horas por dia para sustentar sozinha B.O.T, 11 anos. Ela e a filha moram em Sarzedo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Por ignorar o debate, não sabia até o dia dessa entrevista que sua criança pode ser criminalizada, caso a família decida interromper a gravidez de 19 semanas, recém-descoberta. “Eu não sei como aconteceu nem quem foi porque ela não quer contar. Disse que está com medo de alguém brigar com ela. Vamos esperar e ver o que fazer”, lamenta J.O.T.
Isabela Murça reforça que a situação de J.O.T é a de milhares de brasileiras. E reforça que além da OAB, toda a sociedade precisa mobilizar-se contra o PL 1904. “Todos os direitos femininos foram conquistados com muita luta. Não podemos retroceder um século com um PL. A OAB/MG é contra o PL 1904, mas todos os setores mineiros e sociedade civil precisam ativamente lutar contra ele”, convoca a advogada.
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