Violência contra a mulher no trabalho exige coalizão urgente

Agosto Lilás é o mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher. Este ano, casos marcantes evidenciam um cenário desafiador e ainda pouco debatido: a violência contra as trabalhadoras nos ambientes de ofício.
Desde julho (26), o ex-presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), instituição financeira brasileira sob a forma de empresa pública, está sendo investigado por assédio moral e sexual contra pelo menos 10 mulheres em Brasília/DF. Em 2022, a CEF registrou 177 acusações de assédio moral e 77 de assédio sexual contra trabalhadoras, conforme dados da Lei de Acesso à Informação (LAI).
O procurador municipal da cidade de Registro, em São Paulo, espancou a colega de trabalho dentro de um prédio público onde os dois atuavam. O motivo seria a abertura de um processo administrativo contra ele. O caso ganhou mais repercussão porque o agressor foi filmado.
Ver as cenas da agressão contra a funcionária pública aumenta a necessidade de diálogos sobre como o ambiente corporativo afeta as mulheres.
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Cerca de 76% das mulheres brasileiras reconhecem já ter passado por um ou mais episódios de violência e assédio no trabalho. Pelo menos 36% delas dizem já terem sofrido preconceito ou abuso por serem do sexo feminino, revelam os dados da pesquisa Percepções Sobre a Violência e o Assédio Contra Mulheres no Trabalho, desenvolvida pelo Instituto Patrícia Galvão, em 2020.
Constrangimento pelo vestuário, exigência de metas inacessíveis, falta de acesso às informações, retaliações por progressão de carreira, questões de maternidade ou gravidez, pedidos de favores de natureza doméstica no trabalho, como “fazer o café” ou “preparar um lanche”, são alguns tipos de violência e assédio.
De acordo com Hélvia Barcelos, especialista com quatro décadas de vivência em gestão de pessoas e consultoria em compliance trabalhista da FourEthics, essa cultura remonta à conformação do próprio ambiente regulatório, cultura do país e contingências do mercado de trabalho no Brasil.
Hélvia contextualiza que até 1962 as mulheres precisavam da permissão do marido para trabalhar. A conquista feminina da igualdade para o direito ao trabalho é recente e veio com a promulgação da Constituição Federal no país em 1988.
Nas décadas de 1970 e 1980, crises econômicas causaram demissões em massa, as quais estimularam as esposas a saírem de casa para trabalhar. A força de trabalho delas foi absorvida em cargos com salários baixos, postos com alguma relação doméstica ou dentro do espectro cultural do papel permitido às jovens, tais como cuidadoras, organizadoras, compradoras ou vendedoras.
“Culturalmente, as mulheres eram destinadas às atividades de cuidar da casa e formação dos filhos. Os primeiros postos ocupados foram de secretárias, assessoras ou enfermeiras. Não havia respeito profissional por elas porque esse não estava presente na sociedade. Àquelas poucas que conseguiam cargos de lideranças era exigido o comportamento masculino de objetividade e pouca afetividade. Muitas dessas primeiras líderes sofreram e/ou foram cruéis com as suas equipes. Tal cultura organizacional, reflexo de assimilação equivocada de estilo de gestão autoritária, foi perpetuada por décadas”, afirma a especialista.
Zeni Nunes Leonor, 57, sabe bem disso. Ela trabalha desde os 15 anos de idade e recorda como se fosse hoje um caso vivido de violência no trabalho.
“Eu era doméstica e a minha patroa disse que eu precisava limpar no mesmo dia todas as paredes. Minha proposta era fazer o serviço aos poucos e com qualidade. Ela exigiu que se não fosse em um dia, contrataria um homem para ajudar o trabalho. Disse que estava pagando. Achei violento, respondi que não era escrava e lá não voltei. Do mesmo modo que eu preciso do dinheiro deles, eles precisam do meu trabalho”, defendeu-se.
Hélvia classifica o episódio como assédio moral por gênero e considera a resposta de Zeni à frente de seu tempo.
“À época de Zeni, isso era ainda mais comum que hoje. É recente a discussão sobre assédio moral, assédio sexual no trabalho, divisão sexual do trabalho, cultura do estupro, além dos mais recentes mansplaining (explicação de coisas óbvias), manterrupting (interrupção de falas de mulheres) e bropriating (apropriação de ideias). Todas essas são modalidades de violência contra a mulher que acontecem diariamente, até naquelas empresas consideradas as melhores para se trabalhar”, afirma Hélvia.
Para a especialista, em Minas a situação é mais grave. Ela explica que o mercado mineiro conta com um agravante por ter sido constituído por atividades masculinizadas, como a mineração. A entrada feminina deu-se mais tarde, com a industrialização e a ampliação do comércio e dos serviços na segunda metade do século XX. Tais fatores culturais, combinados com a presença da legislação retrógrada, retardaram os avanços no desenvolvimento da conscientização acerca da violência no trabalho no estado.
Hélvia reforça que, para complicar ainda mais a situação, existem algumas violências que vêm travestidas de valorização. De acordo com ela, lideranças carismáticas podem ser perigosas, especialmente para as mulheres.
“Estudos mostram que muitos abusos, e até crimes, podem acontecer com o consentimento ou desconhecimento das vítimas porque existe um jogo de poder para afetar a autoestima das pessoas. Na literatura, o pesquisador José Henrique de Faria define o conceito de sequestro de subjetividade e estabelece os cinco traços de violência que podemos identificar até na cultura, missões e valores de diversas empresas. Isso é seríssimo porque muitos convertem-se em violência contra a mulher em sua atividade laboral”, informa a especialista.
Hélvia completa ainda que o conceito de sequestro de subjetividade, cunhado por Faria e Meneghetti (2007), priva os sujeitos de sua liberdade de se apropriar da realidade e de elaborar, organizar e sistematizar seu próprio saber, ficando à mercê dos saberes e valores produzidos e alimentados pela organização sequestradora. Estes cinco hábitos comuns em corporações que são capazes de seduzir a trabalhadora a colocar-se e manter-se em situação de violência. E causam sérios danos à saúde mental e física.

Coalização pela transformação social
Segundo dados levantados pelo “Movimento Minas 2032 – Pela Transformação Global (MM2032)”, Minas Gerais precisa melhorar o desempenho na igualdade de gênero aplicada ao trabalho.
O Movimento foi criado em 2017 pelo jornal Diário do Comércio para fomentar ações efetivas que rumam à consolidação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), instituídos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015, para a Agenda 2030,
Conforme a pesquisa, a média alcançada em Minas em relação ao ODS 5, de Igualdade de Gênero, foi de 12,5 pontos em 100, o que é considerado ruim ou péssimo. No caso dos quatro sub objetivos ligados ao trabalho, dois tiveram, também, avaliações ruins ou péssimas: a desigualdade por salário entre elas e eles e a presença de vereadoras nas cidades. A diferença entre a participação masculina e a feminina no estudo e trabalho por gênero foi regular.

As notas foram obtidas por meio da iniciativa do Grupo de Trabalho de Cenário e Avaliação dos ODS, do MM2032. Voluntários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de Minas Gerais (Fecomércio-MG) e da Seal consolidaram Índices de Desenvolvimento Sustentável das Cidades – Brasil (IDSC-BR) disponíveis e criaram filtros para gerar dados que mostrem a realidade dos ODS no Estado.
Para chegar às notas em relação ao cenário de trabalho por gênero, foram contemplados os 853 municípios de Minas. Conforme Adriana Muls, presidente e diretora editorial do Diário do Comércio e coordenadora do MM2032, o levantamento é um instrumento de mudança.
“Estamos padronizando os índices dos ODS em uma mesma escala para efeito comparativo e análise precisa do cenário mineiro. Nessa missão, o MM2032 exerce o papel de organizar e disponibilizar os dados. Isso é de suma importância, porque os números evidenciam os desafios de combate à violência contra a mulher no mercado de trabalho. De posse disso, vamos, enquanto MM2032, convocar todos os atores que desejam colaborar com mudanças neste tema, por meio de ações simples e viáveis hoje. É inadmissível ficarmos parados enquanto sociedade, e o Jornal Diário do Comércio consolidou-se como espaço de discussão e transformação da sociedade e da economia mineira nesses 90 anos.”
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