Pesquisa, tecnologia e mercado: a conexão que falta

Ela é fundadora e CEO da Wylinka – organização cujo propósito é transformar a ciência produzida nas universidades em inovação, aplicações práticas que chegam ao mercado e melhoram o dia a dia das pessoas. Ana Carolina Calçado gera impacto ao conectar a universidade e o mercado; mobilizando e apoiando ecossistemas com programas de inovação.
Formada em bioquímica pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), ela faz parte de um time que está crescendo, apesar das dificuldades: o das mulheres nas ciências e no campo da inovação. E, agora, conversa com exclusividade com o Diário do Comércio na página Vanguarda.
Como surgiu a Wylinka?
A história começou na universidade. Eu já gostava de pensar a ciência além do laboratório. Eu fui fundadora de uma empresa júnior de bioquímica, fiz estágio em empresas, mas não existia dentro da universidade um caminho claro para pensar a ciência como negócio. A Lei da Inovação (2004) trouxe a possibilidade da universidade interagir mais com o mercado. E eu tive a sorte de, no último ano, atuar como estagiária em um projeto do Sebrae e trabalhar com algumas pesquisas que poderiam ser levadas para o mercado. Depois trabalhei em consultoria com esse tipo de inovação científica e também outras. Esse tipo de inovação me encantava muito. Percebi que precisava existir uma organização que olhasse para esse tipo de inovação e assim, resumidamente, surgiu a ideia da Wylinka.
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A Wylinka já capacitou mais de 10 mil pessoas, atendeu 1.833 instituições, soma mais de 3.300 soluções e negócios apoiados, além de mais de 3.000 parceiros e cerca de 1.200 tecnologias mapeadas. São números impressionantes. Dessas tantas histórias, quais lições você tira?
Ao olhar esses números, tenho uma sensação – até aqui – de missão cumprida e celebração. A gente acredita e vive essas histórias e sabe que existe muito mais. Estamos sempre focados em como fazer mais. O sentimento sempre é “a gente veio até aqui e, agora, como vamos potencializar mais tecnologias e atingir mais pessoas?” Quando a gente ajuda o pesquisador a pensar em como ele pode levar a ciência que ele faz a ser uma solução, a gente está trabalhando não só aquela pesquisa específica, estamos trabalhando a capacidade daquele pesquisador pensar em todas as suas futuras pesquisas e, além disso, ele é um professor, um agente de influência no seu ecossistema.
Ainda existe dentro das universidades uma mentalidade que retarda a relação com a iniciativa privada?
Sim, a inovação é uma coisa recente ainda dentro da academia. As leis são de 2004 e isso é pouco tempo para mudar uma mentalidade. Precisamos mudar a capacidade dos ambientes de inovação e também as estruturas e processos. Já tivemos uma melhora, mas ainda temos muito a caminhar. Por isso que a Wylinka trabalha também com os agentes de inovação. O objetivo é que eles entendam como podem mudar esses processos e torná-los mais efetivos. E também trabalhamos com os agentes públicos para que eles pensem as políticas de forma inovadora. No final, o que buscamos é desenvolvimento socioeconômico. O pesquisador pode ganhar dinheiro com isso, mas a sociedade ganha muito mais. A gente importa muita tecnologia tendo capacidade para produzi-las e isso é preocupante.
Pesquisas mostram que apenas 1,6% da produção científica brasileira se transforma em inovação. Ao mesmo tempo, o Brasil está entre os 15 maiores produtores de pesquisa científica do mundo, mas nem próximos disso no registro de patentes. Ter capacidade de produzir ciência e torná-la inovação, ou seja, solução para as pessoas, gera desenvolvimento econômico e também prestígio entre as nações, certo?
Tanto em volume e qualidade temos pesquisas e pesquisadores relevantes mundialmente. Temos condições de usar a tecnologia para resolver problemas não só internos, mas também levar para o mundo todo. E é preciso olhar para o ecossistema. Na disputa global por espaço, isso tem grande relevância. Ciência e tecnologia são aspectos de muito peso. Os impactos dessa relevância a gente vê, por exemplo, no empenho da China em produzir uma IA (inteligência artificial) melhor do que a dos Estados Unidos. Isso tem a ver com poder, domínio e influência.
Este ano vamos participar do Global Summit Hello Tomorrow, na França, principal evento de deep techs – que são os negócios de base científica e tecnológica. Até agora, o Brasil não teve uma presença significativa nesse evento. Desde o ano passado, nos aproximamos e conseguimos que mais startups se inscrevessem. Pela primeira vez, agora em 2025, o Brasil foi classificado como “top location”, que são os países com mais startups de qualidade relevante. Isso coloca o Brasil no mapa. Junto a isso estamos fazendo uma delegação de líderes públicos e privados, com um estande nosso para gerar conversas, mostrando o que temos de bom.
De acordo com o Meeting the Callenges of Deep Tech Investing, realizado pelo Boston Consulting Group (BCG), o ecossistema de deep techs pode atrair de US$ 140 bilhões a US$ 200 bilhões em investimentos até 2025. Como o Brasil pode atrair uma parte desses investimentos?
Temos potencial e muitos desafios. Ainda podemos acelerar em algumas áreas estratégicas. Para isso a gente precisa facilitar a vida do pesquisador que quer empreender. Também melhorar o ambiente de negócios. Tenho visto algumas coisas interessantes como o Programa de Neoindustrialização do governo federal, o plano de transformação ecológica, por exemplo.
Fazemos parte de um pacto pelas deep techs, liderado pela Finep ( Financiadora de Estudos e Projetos) para articularmos a conversa entre diferentes atores que tomam a decisão para facilitar esse caminho.
A inovação baseada em ciência é de longo prazo e, por isso, precisamos de políticas de estado. Cada vez que descontinuamos uma iniciativa para retomar depois, há um prejuízo muito grande, com retrabalho, atraso e desperdício de recursos.
Falamos o tempo todo de mão de obra qualificada. Como a Wylinka lida com a escassez de talentos no Brasil na formação da própria equipe?
O time é uma fortaleza da Wylinka. Conseguir fazer tudo o que fazemos tem a ver com isso. Hoje temos uma equipe em torno de 30 pessoas que atuam em todo o País, em um modelo principalmente remoto e flexível. Acho que o segredo está aí. Temos um propósito claro e um cuidado muito grande com os processos internos. Olhamos cada um como pessoas e não como recurso. A gente quer que essas pessoas qualificadas estejam satisfeitas e felizes.
O desafio hoje é fazer isso para o ecossistema. Nas nossas capacitações sempre consideramos os gestores e os atores do ecossistema local. Temos uma visão de expandir essa capacidade para outros agentes e lugares do ecossistema.
Se é difícil para os pesquisadores de maneira geral, para as mulheres ainda mais. Como minimizar essas dificuldades?
Nos nossos programas estimulamos que as mulheres participem. A questão das mulheres na ciência e na inovação é o que acontece no mundo. É uma questão de cultura que precisa ser cuidada, mas que não é o caso de uma ação apenas. É muito mais que isso. Desde a infância a mulher é ensinada a agradar e os meninos a se arriscarem. Essas questões vão influenciar na escolha das carreiras, se vão se oferecer para uma promoção, por exemplo. Isso tudo é muito desafiador e o mundo da tecnologia e inovação é um campo de risco e que exige uma dedicação que, muitas vezes, se choca com a economia do cuidado que recai sobre as mulheres.
Isso deságua na questão do baixo número de mulheres na liderança. Precisamos ocupar essas posições, porque quem lidera constrói a narrativa. As mulheres têm repertórios complementares aos dos homens. O mundo é dos homens porque é construído por eles. Um bom exemplo é de uma instituição francesa que estava implantando a licença paternidade. Ao fim eles perceberam que os homens que tiveram a licença, aumentaram a sua produção científica. Isso quer dizer que eles usaram esse tempo da licença para produzir e o grosso do cuidado continuou sobre as mulheres. Então, as coisas têm melhorado, mas ainda há muito para ser modificado.
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