Bar Casa da Uva quer democratizar acesso ao mundo dos vinhos

Tido como a bebida dos deuses, o vinho está na mesa de gregos e baianos. Milenar, encantou essa mineira que se tornou especialista e abriu um bar de vinhos diferente. Voltado para os vinhos que não estão no supermercado, o Casa da Uva harmoniza sabores, tipicamente mineiros, a vinhos de diferentes regiões do mundo, inclusive das nossas montanhas.
O Diário do Comércio conversa, hoje, com Ana Borges, fundadora do bar de vinhos Casa da Uva, que também não cabe em apenas um rótulo, para contar um pouco da sua carreira, do empreendedorismo e, claro, nos ensinar a escolher um bom vinho.
Como surgiu o seu interesse pelos vinhos?
Eu trabalho na cozinha desde os 13 anos de idade, eu comecei lavando pratos. Então, eu fui auxiliar de cozinha, cozinheira, confeiteira, padeira, chef de cozinha e eu estava meio que desiludida com a rotina da cozinha, que é muito pesada, mas eu não sabia fazer mais nada que não fosse ali dentro de um restaurante, de um bar. Trabalhei no salão, trabalhei como garçonete, como bartender e gerente. Até que eu comecei a dar consultoria e eu fui montar uma carta de vinhos e vi que não entendia nada. Fiquei na mão da importadora porque eles colocaram o que eles queriam vender. A partir disso, eu comecei a estudar até que eu me mudei para São Paulo, ganhei um cursinho de vinho do vendedor de uma das importadoras que atendia o restaurante do qual eu era gerente e me encantei completamente. Vendi meu carro, paguei um mestrado na Espanha e fui estudar vinho. Às vezes penso “onde é que eu amarrei minha égua”? Mas eu gosto muito. É bem desafiador, mas eu não me veria em nenhuma outra situação.
Esse é um setor ainda muito masculino, certo? É muito raro a gente entrar num restaurante ou em um bar e ter uma sommelier mulher.
Com certeza. Inclusive o nome é usado sempre no masculino. Ninguém nem conhece o termo sommelière, que é a mulher. Eu fui uma das primeiras pessoas a ter a formação do W7 em Minas Gerais. E eu fui a primeira pessoa do Brasil a ter enologia, agronomia e W7. Então, assim, eu gosto muito de estudar e frente ao preconceito do mercado, se precisar, eu jogo meus diplomas na cara, sabe? O melhor argumento contra o preconceito é a competência. Hoje eu formo sommeliers, então não enfrento mais esses obstáculos, pelo menos aqui em Belo Horizonte, mas no começo, quando voltei para BH, foi bem difícil.
E o empreendedorismo era uma vontade desde sempre?
Eu venho de uma família de funcionários públicos, a maioria professores, todo mundo concursado, preocupado muito com segurança. Eu fiz um concurso público e desisti quando fui chamada. E aí fui tentar trabalhar, mas sempre autônoma. Então, por mais que eu tivesse um trabalho, na época que eu trabalhava em cozinha, eu fazia bolo, eu fazia salgados, eu fazia pimentas, geleias, licores pra vender. Eu sempre gostei de fazer coisas pra vender. E quando eu voltei aqui pra BH em 2011, eu comecei a trabalhar com importadoras, dando consultoria, depois virei gerente. Aí eu abri uma empresa de consultoria e dou consultorias até hoje para bares, restaurantes, importadoras, produtores. E esse negócio de abrir um bar, eu e a minha ex-sócia fomos chamadas para ajudar uma pessoa que tinha um café na Savassi e ela queria operar à noite com um bar de vinhos. No final das contas, o negócio não deu muito certo, mas aí a gente já tinha ficado com a vontade e abrimos o bar em julho de 2022.
E vocês criaram um negócio muito próprio, um bar de vinhos com foco nos vinhos que não estão nos supermercados. O que são os vinhos que não estão no supermercado?
Tanto na cozinha ou quando eu dava as consultorias, eu gostava de colocar a diversidade nas cartas. Então eu não colocava aqueles mais conhecidos porque o cliente chega e pede aquele vinho da marca X e não vai experimentar todos os outros que existem. Eu sou dessas que não gosto nem de repetir vinho na minha vida. Eu gosto de beber sempre alguma coisa diferente, porque a gente tem tantas uvas, produtores, países, regiões, pra que a gente vai ficar bebendo sempre a mesma coisa? Então, a ideia foi sempre dar espaço para os pequenos produtores. Eu cheguei a ter uma distribuidora de vinhos brasileiros em 2013. Infelizmente, eu acabei falindo, porque naquela época a visão de vinho brasileiro era muito ruim, tinha muito preconceito. Depois disso, eu trabalhei muito tempo no Ibravim, viajava o Brasil inteiro dando curso para donos de bares e restaurantes, para quebrar esse preconceito. E eu fui conhecendo pequenos produtores. Então, quando resolvemos abrir o bar, eu e a Gabi, que é minha ex-sócia, colocamos a premissa de não trabalhar com grandes marcas.
Como você avalia essa recente explosão dos vinhos nacionais e, especialmente, dos vinhos mineiros?
Nem tão recente assim. A gente tem produção de vinhos em Minas desde os 1700. E com uvas europeias, não era só com uva de mesa. Mas teve um pesquisador da Epamig, o Murilo Regina, que desenvolveu uma tese de doutorado no começo dos anos 2000, e a partir disso a gente conseguiu descobrir que era possível, sim, produzir vinho de qualidade em Minas Gerais, desde que a gente invertesse o ciclo da videira, ao invés de colher no verão, a gente colhesse no inverno. Estamos no inverno e está fazendo mais de 30 graus, e de noite friozinho, seco, é tudo que a uva precisa. Então, eu sou produtora também, tenho um vinhedinho em Moeda (região Central). Fundamos a Associação dos Produtores de Uva e Vinho de Minas Gerais. Aqui no Casa da Uva agora eu tenho uma vitrine com 12 espaços para vinhos mineiros de pequenos produtores. É uma coisa que exige uma certa venda, não é uma coisa que o cliente pede sozinho, a gente precisa falar, explicar. Infelizmente hoje os vinhos mineiros são caros porque, diferentemente do produtor padrão que faz uma poda, um ciclo de adubação e uma produção por ano, a gente faz duas podas, dois ciclos de adubação para uma produção no ano. Então a gente tem o custo quase dobrado, tem o dobro de mão de obra, o dobro de insumos, de adubos. Então é uma uva muito cara.
E para que aí se torne mais acessível ao longo do tempo, tem que abrir mercado, tem que diversificar a produção ter mais gente produzindo, ter mais volume…
Tem que ter uma ajudinha do governo na tributação, porque hoje o principal problema é a tributação. Eu estou indo, daqui a duas semanas, para uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, para falar em nome da associação, pleiteando a reclassificação do vinho como alimento, como é na maioria dos países, e não como bebida alcoólica. Com isso, vamos tentar uma redução de tributos para tornar o vinho mais acessível. Hoje uma grande parte do preço do vinho é imposto. Chega a quase 70% no preço dos importados, e mais de 50% dos brasileiros.
Agora, eu tenho que fazer aquelas perguntas que todo mundo quer fazer para uma sommelière, que é a questão da harmonização. São muitas regras, mas para quem não sabe nada, quais são as duas ou três orientações básicas para não jogar dinheiro fora e sair feliz de uma noite de vinhos?
Na WSET (Wine & Spirit Education Trust), que é uma das instituições onde eu dou aula, existe uma tabelinha fantástica, que fala da característica da comida e o que vai acontecer com o vinho. Então, basicamente, se eu tenho uma comida salgada ou ácida, o vinho vai ficar melhor. Ele vai ficar com uma impressão de menos tanino, os taninos vão parecer mais macios, ele vai ficar mais rico e mais frutado. Se eu tenho uma comida doce ou umami, o vinho fica mais tânico, mais ácido, menos frutado. Então, se a gente jogar com essa regra, conseguimos matar 90% das harmonizações. Aí você fala, cogumelo tem muito umami, então eu não vou poder usar cogumelo com vinho tinto, porque ele vai ficar muito tânico. Mas ele sempre anda junto com o sal. Então, você pode fazer as regras do sal. É o equilíbrio. Eu acho que outra regrinha que a gente pode colocar é da intensidade de sabor. Comida mais delicada com vinho mais delicado, comida mais intensa, com vinho mais intenso. Gordura e acidez caminham juntas. Eu sempre quis vender torresmo no bar, mas no outro lugar que a gente estava, a cozinha era muito pequena. Agora eu tenho uma bela fritadeira, vendemos um torresmo fantástico. A minha harmonização preferida é o torresmo com espumante. O espumante é ácido, ele vai lavar a sua boca. A primeira mordida que você dá no torresmo, ele é super gostoso. Depois é só gostoso porque a gordura tampou a língua. A cada gole que você dá de uma bebida ácida, vai lavar aquela gordura e suas papilas gustativas vão sentir mais sabor. Então assim, pra mim torresmo com espumante é das coisas mais lindas que a gente tem em Minas Gerais.
Outra discussão é sobre a questão da temperatura certa para servir o vinho. Qual a regra para um País tropical como o nosso?
A primeira coisa é que não é preciso ter uma adega para manter o vinho na temperatura de serviço. No caso do vinho tinto, gosto de servir entre 15 a 18 graus. Cinco minutos de geladeira é o suficiente. Já o Vinho branco é em torno de 8 a 10 graus. Você vai servir isso no Brasil, todo mundo vai reclamar que está quente. Então, eu gosto de servir vinho um pouquinho acima da temperatura de cerveja. Meia hora no congelador já resolve. Antes que se botar o vinho pra gelar, vou receber visita: papel toalha, enrola a garrafa, põe no freezer. Em oito minutos, seu vinho está geladíssimo. Eu não tenho nenhum tipo de frescura com vinho. Às vezes, eu abro a garrafa porque eu já quero beber e aí eu boto uma pedrinha de gelo em cada taça enquanto o resto está gelando. Aí alguém diz: “Ana, mas você não pode botar gelo no vinho porque você está diluindo”. Sim, mas a gente faz isso com o whisky, com o gin. Você dilui todas as bebidas quando coloca gelo. Até a Coca-Cola tá sendo diluída. Então, óbvio que eu não vou botar gelo num grande vinho, mas no vinho do dia a dia, está calor, pede gelo. Fica mais levinho.
Você falou da harmonização do torresmo com espumante. Tem mais alguma harmonização surpreendente que a gente possa testar?
Eu acho que a comida mineira vai muito bem com vinhos de alta acidez, vinhos brancos, espumante. Eu adoro, por exemplo, feijão tropeiro com Riesling. Outra coisa que dá pra brincar é com vinhos de sobremesa. Muita gente tem preconceito com os nossos vinhos de garrafão. Isso com doce de leite e queijo, fica a coisa mais maravilhosa do universo. A nossa comida é muito mal explorada em termos de harmonização de vinho, de entender o que a gente pode fazer. A gente pode brincar muito com essas coisas. Aqui a gente tem, por exemplo, um arroz de costela que vai lindo com um tintão potente. Harmonização é tentativa e erro. Se você for dentro daquelas premissas básicas e for experimentando, vai descobrindo coisas muito diferentes.
Outra clássica pergunta para qualquer sommelier é: e depois do vinho, qual a sua bebida preferida?
Eu adoro cerveja. Eu sou sommelière de cerveja também, só que cerveja me faz muito mal. O que eu fiz – um tanto que egoisticamente – foi criar uma carta de drinks pra Casa da Uva. Estou explorando os drinks, porque a cerveja não tem sido muito minha amiga. Ontem mesmo, eu bebi uma “mula mineira”, que é a nossa releitura do moscow mule com cachaça de Jequitibá.
Para fazer suas aulas, qual o caminho?
@acasadauva no Instagram, a gente vai lançar os próximos cursos no mês de outubro. E tem mais uma novidade: vamos lançar o circuito turístico do vinho. Já somos quatro produtores a, no máximo, duas horas de Belo Horizonte. Em breve BH vai ser um polo de enoturismo bem interessante.
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