Cachaça ganha status para representar Minas e o Brasil no mundo

O assunto de hoje é a mais brasileira das bebidas: a cachaça! E dizem por aí que a produzida em Minas Gerais é a melhor!
Símbolo da cultura brasileira, ela ainda enfrenta preconceitos em seu próprio país, enquanto conquista admiradores no exterior. Com uma diversidade de aromas e sabores incomparável, o destilado nacional começa a ganhar espaço e reconhecimento, puxado por iniciativas que valorizam sua qualidade e tradição. A valorização passa por educação, políticas públicas e criatividade na coquetelaria e no turismo, conectando o produto a experiências únicas. Como quebrar barreiras e tornar a cachaça, de fato, a bebida que representa o Brasil?
Ninguém melhor para falar do universo da cachaça que Leonardo Gomes. Ele é, entre muitas outras coisas, “mineirim”, bartender, mixologista cachaceiro com formação em coquetelaria, Gastronomia e Sommelier de Cachaça, segundo o próprio LinkedIn.
É também criador da marca Pinga & Prosa, consultor de coquetelaria do Prêmio Cumbucca e Membro da Frente da Gastronomia Mineira.
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Muitos países têm suas bebidas típicas e que são reconhecidas pelo mundo, como a tequila mexicana, a vodka russa ou o saquê japonês. Nós temos a cachaça, mas ela durante muito tempo foi mal vista por nós mesmos. Nos últimos tempos isso tem melhorado. Por que essa má fama e como isso começa a mudar?
O maior problema da cachaça ainda é o preconceito. E é um preconceito nosso, a cachaça não sofre esse preconceito lá fora. Você deu um ótimo exemplo, a tequila. Os mexicanos abraçaram a tequila e a levaram para o mundo. Só depois que eles a abraçaram, que ela conseguiu se desenvolver e alcançar o lugar que está hoje. E a cachaça também enfrenta preconceito pelo que ela viveu até aqui. A gente tem mania de chamar de pinguço ou cachaceiro, a pessoa que anda bêbada, que cai no chão, que provoca problemas. E, na verdade, isso pode ser com qualquer bebida. Esse é um problema de saúde pública. Por isso que eu gosto de falar que eu sou cachaceiro, aquele que valoriza, trabalha, vive da cachaça ou gosta da cachaça. Precisamos quebrar o preconceito e entender que o produto é maravilhoso e, na maioria das vezes, infinitamente melhor do que muitos produtos que vêm fora. A cachaça tem uma quantidade de aromas e sabores que nenhum destilado do mundo pode oferecer. Diferente do resto do mundo, no Brasil nós temos mais de 30 madeiras para envelhecer a cachaça. E cada madeira vai entregar um aroma ou um sabor diferente. Então, olha que coisa linda. Uísque é muito bom, mas tudo é carvalho. Então vai ter sempre um perfil bem parecido de aroma e sabor. Mas na cachaça, não. Se eu tiver amburana, eu vou ter especiarias e vai ser um pouquinho doce. Se eu tiver o bálsamo, eu vou ter mais herbal. Se eu tiver o carvalho, terei notas de baunilha. Essa é a beleza da cachaça, ela é diversa e ela é muito mais acessível a quase todos os públicos.
A cachaça não tem origem em Minas Gerais, mas a melhor hoje é a cachaça mineira. Quando e por que Minas se torna a terra da boa cachaça?
Não se sabe o local com certeza, mas sabemos que foi no litoral porque a cachaça vem dos engenhos que antes produziam açúcar, e começaram, de alguma forma, a produzir um destilado. A gente chamava de aguardente, e aí veio uma legislação para classificar o produto cachaça, que tem, inclusive, denominação de origem. A cachaça só pode ser produzida no Brasil, se for fora, não pode chamar cachaça. Ela veio para Minas com o descobrimento do ouro. Durante muito tempo, foi moeda de troca e foi usada também para controle das pessoas que mineravam ouro. Mas eu posso falar, com certeza, que a cachaça mineira é a melhor porque: primeiro, nós somos o maior produtor de cachaça de alambique do Brasil. Existe diferença entre cachaça de alambique e cachaça de coluna. A cachaça de alambique tem mais aromas, mais sabores, é feita com mais cuidado. Ela veio pra cá transportada em barris, então a maioria das cachaças mineiras é envelhecida historicamente por esse motivo. Mais uma prova, é que no concurso “Cúpula da Cachaça”, que elege as melhores cachaças do Brasil, mais de 70% das primeiras posições são mineiras. Então isso só vem reverberar de que a gente tem um produto realmente muito, muito bom.
Para comprar uma boa cachaça, além de ser regularizada, o que eu preciso observar no rótulo?
Primeiro e mais importante, tem que ter um rótulo para que você saiba a procedência e como ela foi feita. E nesse rótulo, na parte de trás, tem o número do Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária). Se não tiver esse número, fuja. Esse número atesta que é uma cachaça aprovada pelo governo e que está sendo fiscalizada. Segundo, a lista de ingredientes que foram usados na produção. E, por fim, observe se não tem nenhum resíduo, nada boiando, nem partículas de alguma coisa dentro dela. E depois, deguste. Se você quiser começar a entender mais o que cada madeira entrega, existem algumas técnicas para a degustação. Exemplo: use uma taça. Nela você vai conseguir movimentar e evaporar um pouco dos alcoóis e sentir os aromas. Cheira uma, duas vezes. Aí dá um golinho pequeno, só põe na boca e deixa ela passear. O álcool não é algo comum para o nosso organismo. Então, nesse primeiro gole, você vai sentir a língua queimando, um pouco de incômodo. Dá um segundo gole, a partir do terceiro a boca já se acostumou e você vai conseguir sentir os aromas e sabores daquele produto. Isso é importantíssimo. Aquilo de virar um vez, você só engole álcool, não está aproveitando a beleza que aquele produto pode entregar.
A gente, de vez em quando, vê algumas iniciativas para levar a cachaça para o exterior. Algumas, até, bastante exóticas, como cachaça com folha de ouro, cachaça na lata… enfim, o que falta para a cachaça ser reconhecida como “a” bebida brasileira? Falta política pública?
Hoje a gente já tem uma venda muito grande de cachaça fora do Brasil, principalmente Alemanha e Estados Unidos, mas de cachaça de coluna. Temos que entender e respeitar que essas marcas abriram mercados. Abriram a exportação, mas a gente tem coisas muito mais agradáveis e com aromas e sabores muito mais interessantes. Durante muitos anos faltaram políticas públicas. Mas eu posso dizer que, pelo menos, o governo de Minas tem feito muitas ações para ajudar na valorização e na entrega desses produtos para fora do Brasil e no País como um todo. Na Festuris (Festival de Turismo de Gramado) eu estava representando o governo do Estado levando o produto cachaça para fora de Minas. E a ideia é fazer isso também para fora do Brasil. Nas Olimpíadas, por exemplo, havia um bar mineiro com cachaça na França. Temos o “Exporta Minas” – projeto do governo de Minas – que também ajuda o produtor a entender o que ele precisa para poder exportar. Eu acho que falta conhecimento sobre a capacidade desse fabricante de levar o produto para fora. Uma ação que precisa ser feita é levar mais conhecimento para o produtor. Muita gente acha que é extremamente caro exportar. E tem situações onde a exportação é mais barata do que vender local. Os impostos aqui, às vezes, são mais pesados do que mandar pra fora.
E foi por conta dessa necessidade de conhecimento que você lançou no primeiro semestre o Coletivo Pinga & Prosa. O que é o coletivo.
O Pinga & Prosa já era um projeto de muito tempo e agora consegui juntar um grupo de produtores de cachaça para mostrar que, unidos, somos muito mais fortes. O coletivo foi acontecendo e agora vai ter um novo momento. Essa é uma novidade exclusiva que eu estou contando aqui. O Pinga & Prosa virou uma marca, e a gente vai lançar, em dezembro, um site. O objetivo é trabalhar a valorização não só do produto cachaça, mas da cultura alimentar mineira. Chefs de cozinha vão apresentar pratos envolvendo bebidas mineiras, bartenders apresentando receitas, cobertura de feiras e eventos, e eu vou ter parcerias com algumas instituições para trazer informações. Vai ser bem completo, se preparem aí! Consultores, químicos, responsáveis técnicos falando direto com os produtores. E o foco é a cachaça, mas a gente vai introduzir outras bebidas mineiras como o vinho, que vem ganhando muita visibilidade, e o café, que é a maior bebida mineira e a cerveja.
Você trabalha com drinques. Qual a importância deles para tornar a cachaça mais conhecida?
Os destilados, em geral, têm um volume alcoólico muito alto, de 40% até 48% e isso incomoda muita gente. Dentro da coquetelaria, eu posso transformar a cachaça. Eu gosto de valorizar a regionalidade. Eu sou consultor do Sebrae pelo “Prepara Gastronomia” e viajo muito pelo interior de Minas levando treinamento e conhecimento para os pequenos empresários. O nosso principal objetivo é a valorização do produto local. Trabalhamos sempre com a cachaça, o vinho do local, a fruta da estação. No Norte de Minas eu vou usar, por exemplo, o cajuí, que é um fruto muito comum. Então eu vou misturar a cachaça e entregar algo que vai ser mais agradável para a maioria das pessoas daquela região. Em um bar posso ter uma carta com 15 coquetéis, cada um com um tipo de aroma e sabor diferente, usando uma cachaça diferente e agradando um público diferente. Além disso, entrego um produto com um volume alcoólico menor, com mais qualidade e com uma diluição maior. Posso ter sucos, frutas e outras coisas que diminuem a proporção de álcool.
O enoturismo movimenta milhões de dólares no mundo inteiro e, inclusive, Minas Gerais está começando a “surfar nessa onda”. A gente já começa a ver algumas rotas privilegiando a cachaça como a Frango com Cachaça, no Circuito das Grutas, na região Central de Minas. Mas ainda é pouco. Turismo e cachaça não poderiam estreitar relações?
Eu acredito que sim. Um alambique é um lugar extremamente gostoso de visitar. O turismo é o melhor negócio do mundo. Quando viajam as pessoas querem viver experiências. É um dinheiro que vem de outra região e movimenta a economia local. Em Três Pontas (Sul de Minas), por exemplo, a Divina Cana está em uma das maiores regiões produtoras de café do Brasil. E, lá no meio, cercado por milhões de pés de café, está o alambique. É um lugar lindo. Você vive a experiência do canavial até o envelhecimento. Eles ainda oferecem uma degustação harmonizada com pratos. É uma imersão no mundo da gastronomia dentro de um espaço que produz cachaça. As destilarias precisam se espelhar no vinho para ofertar essa experiência imersiva e conseguir levar a pessoa até aquele ambiente para uma experiência inesquecível.
Falando dos seus gostos pessoais, depois da cachaça, qual sua bebida favorita?
Gosto muito de cerveja. A cachaça eu bebo todo dia a trabalho, então se eu vou a um restaurante e bebo um drinque, eu acabo fazendo análise e não aproveito. Com a cerveja eu posso curtir.
E uma combinação ou harmonização inusitada, seja pra fazer um drinque ou uma refeição, um prato que combina com a cachaça?
Vão ser duas! A primeira é cachaça com doce. Funciona demais! Uma cachaça envelhecida em carvalho, harmonizada com pudim de doce de leite. Experimentem e vão me agradecer depois. E de coquetel, foi o que eu levei para Gramado: é o CQC, que é cachaça, queijo e café. Então é um coquetel que vai uma aguardente de café, um licor de café e uma espuma de doce de leite com queijo. Então tem doce, salgado, café, cachaça, tudo junto num copo só. É um coquetel de mineiridade.
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