Carnaval sem microplástico: conheça o glitter biodegradável criado em Belo Horizonte

“Gente é pra brilhar, não para morrer de fome”, diz a música “Gente”, de Caetano Veloso, lançada em 1977. Quatro décadas depois, a composição se tornaria inspiração para a artesã e designer Drika Oliveira, de Belo Horizonte, criar sua marca de bioglitter em 2017, a “É para Brilhar”. Agora, em 2025, a corrida contra o tempo para um modo de vida mais sustentável em um planeta compartilhado por pelo menos 1,5 milhão de espécies (catalogadas) nunca se fez tão urgente.
Foi isso que motivou Drika, que já trabalhava com os glitters tradicionais (feitos de plástico), a desenvolver uma receita para fazer os foliões brilharem de forma mais sustentável no Carnaval de BH.
“Em 2016 eu já vendia o glitter comum, mas me sentia um pouco mal ao ver as pessoas comprando a quantidade de plástico que aquilo gerava. Então, o glitter sustentável veio como uma necessidade ambiental mesmo, para fazer a diferença em meio à diversão. Em 2017, fui testando receitas até chegar em um resultado que eu achasse bonito e que tivesse um valor acessível. Porque também não adianta nada vender algo sustentável que custa caro e que só uma classe social vai poder ter acesso”, explica.
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A partir dali, a É pra brilhar foi crescendo e gerando outros frutos, como os cosméticos biodegradáveis. Mas o pico de vendas continua sendo o Carnaval. Drika se lembra do Carnaval de 2020, por exemplo, que aconteceu pouco antes de estourar a pandemia, como uma boa época de vendas. E a folia do ano passado também, quando ela vendeu 60 mil garrafinhas de bioglitter, com 5ml cada.
A produção acontece em um ateliê que ela montou em seu quintal. É ali que Drika testa suas receitas, faz seu estoque para o período carnavalesco e tenta encontrar novas formas de fazer a sua parte por um mundo melhor. As vendas do Carnaval também rendem um bom pé-de-meia para a empreendedora.
“É uma época excelente pra mim. No ano passado, por exemplo, eu ainda tinha dinheiro do Carnaval em outubro. É bom para fazer uma reserva de emergência ou para viajar. Eu conheço muita gente que faz isso, que usa este bom período de vendas para planejar alguma coisa, dar entrada em uma compra maior, tirar planos do papel”, diz.
Diferenças e semelhanças entre o bioglitter e o brilho tradicional
Tanto nas cores como no brilho, o glitter biodegradável criado por Drika não deixa nada a desejar. Ela possui uma cartela variada de cores e texturas, que vão desde os glitters mais finos, como um pó, até os mais “grosseiros”, cortados em pedaços maiores.
“O glitter que eu faço é mais cintilante, mas hoje em dia já é produzido um tipo feito de celulose na indústria, que é bem semelhante ao glitter tradicional. O meu tem uma aderência diferente na pele também, fixa mais, e não há nenhum problema em você chegar da rua e tomar um banho, porque ele não vai viajar pelo ralo até o oceano, ele simplesmente vai se dissolver”, explica ela.

Enquanto muitos foliões dizem encontrar glitter do Carnaval pela casa o ano todo, o material biodegradável se desfaz em pouco tempo.
“O glitter comum pode ser feito tanto de PVC como de poliéster, que são dois tipos de plástico, ambos poluentes. Como são muito pequenos, eles passam facilmente por qualquer filtro, e enquanto você vai andando, aquilo vai caindo do seu corpo, vai para o bueiro e chega ao mar. Já o bioglitter é feito com ingredientes naturais, então mesmo que ele desgrude do seu corpo, ele vai se dissolver na água, no chão, na terra úmida. Ou seja, vai voltar ao que era antes. Assim, ele não vai poluir o meio ambiente, não vai chegar no mar e nem na gente, como já aconteceu de o plástico comum ser encontrado em órgãos humanos”, completa.
Produtos como o glitter biodegradável são feitos de materiais orgânicos e de origem natural, como mica, algas, gelatina vegetal, celulose e corantes naturais.
Como o glitter do Carnaval de BH chega ao oceano?
O professor do departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Raphael Tobias de Vasconcelos Barros explica que o plástico, na verdade, é formado por vários materiais.
“É um conjunto de substâncias que têm um comportamento dito plástico, diferentemente do que é elástico, por exemplo. O plástico é algo que pode ser moldado, e é inquestionável a enorme utilidade que esse grupo de materiais tem em nossa vida. O problema é como a gente maneja e gerencia este processo. O plástico foi desenvolvido a partir de petróleo e, mais modernamente, tem sido misturado com substâncias orgânicas que se degradam mais rapidamente, o que é positivo do ponto de vista ambiental”, diz.
Assim, o tempo de degradação do plástico vai depender das substâncias que o compõem e das condições ambientais a que ele está sujeito. De todo modo, a degradação é lenta.
“Embora o plástico seja considerado não degradável, ele é lentamente degradável. Em termos geológicos, não tem nada que deixe de degradar. O problema é que esse processo pode demorar demais e, enquanto isso, esses materiais vão causando problemas no meio ambiente”, explica o professor.
No processo de degradação, o plástico pode ir se fragmentando, condicionado às leis da natureza, e se subdividindo em pedaços menores, se tornando micro ou nanoplásticos. Por se tratar de um material muito pequeno, ele acaba tendo um destino diferente das partículas.

O professor lembra que a primeira grande estação de tratamento de esgoto em Belo Horizonte, que é a do rio Arrudas, foi inaugurada há cerca de 25 anos em uma cidade que tem 127. Ou seja, a cidade funcionou por cerca de 100 anos jogando esgoto no rio Arrudas, segundo Barros, e ainda hoje joga até Sabará, onde também há estação de esgoto.
“Embora sejam eficientes, as estações não conseguem remover todos os contaminantes ou poluentes que adicionamos na nossa água. Então, sempre acaba passando alguma coisa. Se essa coisa for veneno, é um perigo para quem usa essa água a jusante. Se for microplástico, por causa do tamanho eles vão passar em qualquer processo de filtragem, e vão seguir rio abaixo, no nosso caso, rio das Velhas, rio São Francisco. Assim, eles vão seguindo com a força da gravidade até tender ao ponto de nível mais baixo da Terra, o nível zero, que é a superfície do oceano”, conclui.
Outra forma de chegar ao litoral
Antes, Drika vendia seus produtos diretamente no Carnaval, passando de bloquinho em bloquinho. Hoje, ela tem um site onde comercializa o bioglitter e também mantém parcerias com outras marcas e pontos de vendas, como o Maletta Criativa, o Mercado Novo e a loja Endossa. Mais recentemente, ela fechou uma parceria com a marca de bebidas mineira Xeque Mate.
“Eu vendo principalmente nas redes sociais, e coloco meus produtos nessas marcas parceiras. Teve um ano que fechei parceria com 10 lojas. Mas além disso, algumas pessoas me chamam para fazer workshops para comunidades locais como forma de gerar renda para essas pessoas. Tenho muitos clientes fieis aqui em BH, que me acompanham desde 2016, e também tenho consumidores no resto do Brasil, gente que já encomenda os produtos com antecedência”, diz.

Ela também se emociona ao contar que o bioglitter que criou, afinal, vai sim chegar até o litoral, mas de forma positiva: “É algo muito importante pra mim. Eu recebi um convite para parcerias com dois institutos de preservação marinha, o Instituto Argonauta para Conservação Costeira e Marinha, de Ubatuba, em São Paulo, e a ONG Marulho, de Ilha Grande, no Rio, que desenvolve produtos com redes de pesca descartadas”.
Nestes casos, Drika vende seu produto às entidades por um valor bem abaixo do que comercializa para as lojas. Assim, os materiais são revendidos por lá também, gerando renda para os respectivos projetos e assistidos.
Apesar da expansão gradual da marca É pra brilhar, Drika mira um crescimento também sustentável.
“Eu não quero ter uma super marca. Eu gosto de ser artesanal, gosto de poder ver todas as etapas, pegar a cor, olhar o que o produto está se tornado, criar. O que eu penso em plano para o futuro é ter um espaço maior, talvez, para produzir mais. Mas gosto dessa forma mais amorosa e mais próxima de trabalho”, conclui.
Por uma festa mais sustentável – e confortável
O Carnaval de Belo Horizonte, que deve contar com 6 milhões de foliões neste ano, segundo a Prefeitura, é um dos mais brilhantes do País. Entre fantasias variadas e de todas as cores, um item está sempre presente: o glitter. E isso é inevitável, quase uma marca registrada da festa. Por que não, então, fazer escolhas mais sustentáveis?
Além de “acabar com a fome”, premissa cantada por Caetano na década de 70, e “reduzir as desigualdades”, figuram na lista dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) a busca por:
- um consumo mais sustentável e responsável,
- cidades e comunidades sustentáveis,
- água potável e saneamento,
- pela vida na água e terrestre,
- e a ação contra a mudança global do clima.
Trata-se de um pacto global para acabar com a pobreza e proteger o planeta por meio de ações para alcançar o desenvolvimento sustentável até 2030. Faltam apenas cinco anos.
Além de contribuir por um mundo mais longevo e justo para todos, adotar práticas sustentáveis também pode tornar esses períodos de calor e aglomeração de pessoas, como o Carnaval, mais confortáveis.
O professor doutor do curso de Design de Moda da Escola de Belas Artes da UFMG Tarcisio D’Almeida explica que as fantasias têm características diferentes das peças usadas no cotidiano, como o conforto e a leveza.
“Por isso, o ideal são itens do vestuário que tenham a respirabilidade e o algodão como matéria-prima predominante. Em caso do uso de peças com matérias-primas sintéticas, estas devem ter a tecnologia de transpiração entre o calor do corpo humano e o suor que ele produz. Já há no mercado uma consciência sustentável em relação a produtos de maquiagem e glitter orgânicos menos agressivos à natureza, pois é o destino que têm após o uso humano. Mas, infelizmente, ainda bem reduzida em relação ao volume de indivíduos que consomem produtos de fantasias durante o Carnaval”, explica.
Para ele, que lidera o grupo de pesquisa “Moda: Teorias e Processos Criativos” na academia, um dos grandes desafios contemporâneos no mundo da indústria é justamente “lidar com a presença de nanopartículas de plásticos que acabam sendo ingeridas por peixes e, consequentemente, por seres humanos”.
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