Caso iFood: uso de inteligência artificial exige liderança qualificada

No ano de 2018, o iFood levantou 500 milhões de dólares naquela que seria a maior captação por uma startup da América Latina até então. No desenho da estratégia, o Ifood enfatizou a necessidade de acelerar o processo de evolução em direção à Inteligência Artificial (IA). Mas como colocar isso em prática?
A história está no livro recém-lançado, “O cientista e o executivo – como o Ifood alavancou seus dados e usou a inteligência artificial para revolucionar seus processos, criar vantagem competitiva e se tornar um case mundial de sucesso”, de Diego Barreto e Sandor Caetano.
E foi para falar sobre o processo de criação do livro, o trabalho no Ifood, tecnologia e ética, entre outros assuntos, que Sandor Caetano – o cientista do livro – recebeu o DIÁRIO DO COMÉRCIO em Belo Horizonte, onde esteve para participar do “Imersão Indústria”, evento promovido pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg).
Por que é importante fazer um livro físico sobre inteligência artificial nessa era que tudo é desmaterializado, das relações comerciais às pessoais? Qual é a relevância de fazer um registro físico de uma jornada como essa do iFood?
Boa pergunta. É interessante que eu não tinha parado para pensar sobre essa ótica. É engraçado porque quando eu e o Diego (Barreto, coautor do livro) paramos para escrever o livro, a ideia era criar alguma coisa que tivesse impacto no empresariado brasileiro, que pudesse ajudar o Brasil a crescer. Tivemos muita sorte de ter uma história bonita para contar. A gente queria compartilhar isso com o máximo de pessoas possível, então todas as nossas decisões de como lançar o livro, foram pautadas no máximo de impacto que a gente poderia causar. A mídia física é mais uma forma de ter impacto e chegar às mãos das pessoas. Esse é o primeiro livro que eu escrevo, é bom poder pegar na mão e cheirar. Obviamente a gente entende que a maior parte das vendas será do livro eletrônico, mas o físico tem um valor que é só dele.
Muita gente associa os aplicativos de entrega à pandemia, mas eles já existiam antes. O iFood é uma história de aplicação de tecnologia, inclusive da IA já em 2019. No livro você fala do ‘sonho grande’. De como ele é importante para quem quer empreender. Como essas duas coisas – o sonho e a tecnologia – se encontram para tornar o iFood um caso de sucesso exemplar?
Em 2018, quando o iFood recebeu o investimento para entrar nessa jornada de tecnologia, o nosso ‘sonho grande’ era aposentar o fogão das pessoas. E por que a gente falava isso? Eu tenho uma experiência própria. Eu e minha esposa gostamos de fazer risoto, só que risoto dá um trabalho gigante. A gente gasta um tempão e não fica bom. Então, o iFood nos dá a oportunidade de experimentar os melhores risotos da cidade. Se não gostamos, a gente troca, pega outro, experimenta vários tipos, compara. Então, esse era o ‘sonho grande’, só que em escala, fazer a comida chegar à casa de todos os brasileiros. Mas precisávamos empregar muita tecnologia para que isso fosse eficiente. A comida precisa chegar quentinha, íntegra e com preço acessível. Ao mesmo tempo, precisa ser bom para o restaurante para que ele tenha sucesso como empreendedor. Eram muitos desafios para aposentar o fogão. A gente precisava da melhor tecnologia para que todas essas engrenagens girarem de forma perfeita.
E aí surge uma conjunção, eram as pessoas certas, que escolheram a tecnologia certa para um momento histórico?
Sim. O iFood vinha crescendo de forma exponencial ano após ano. Obviamente, a pandemia deu um choque porque todo mundo precisou comprar comida on-line, mas a curva e a trajetória do iFood já estavam dadas antes da pandemia. Depois disso, a empresa continua crescendo e fazendo cada vez mais parte da vida dos brasileiros. Então hoje a gente tenta aposentar a cozinha, mas com várias outras opções: tem café da manhã, tem um lanchinho da tarde, tem mercado, farmácia, então, cada vez mais ele facilita a vida do cliente.
Se os aplicativos de entrega já existiam em 2018 e vão continuar existindo, se o acesso às tecnologias, especialmente a inteligência artificial, é cada vez mais fácil, por que uns conseguem ir em frente e, outros, não? A diferença está nas pessoas?
A ideia do livro surgiu porque nós precisávamos nos comunicar com as lideranças. Nós achávamos e hoje temos a convicção de que a Inteligência Artificial, o uso de tecnologia, está aí para todo mundo. O Chat GPT, por exemplo, qualquer um pode ir lá e começar a usar. Acho que escancarou porque caiu na mão dos ‘civis’. Antigamente precisava de uma decisão executiva. Os líderes da empresa precisavam decidir entre eles que o negócio precisava ser diferente. Eles precisavam sonhar com a empresa, com as suas áreas sendo impactadas por Inteligência Artificial e aplicar isso. Então, era um negócio feito por especialistas dentro do porão das empresas. A grande sacada do iFood, como em outras empresas que tiveram sucesso, foi ‘esse é um problema para todo mundo, precisamos dar as mãos. Nossa visão é aquela, nós vamos naquela direção e o nosso negócio reimaginado com o uso de IA é assim’. E aí já não é mais um problema de tecnologia. Eu não falei em nenhum algoritmo, em nenhuma técnica, nem nada, porque não é mais isso que importa.
A Amcham (Câmara Americana de Comércio) divulgou um estudo recentemente sobre as tendências e preocupações dos executivos brasileiros e a inteligência artificial superou pela primeira vez o ESG nesse ranking. Isso está ligado ao uso da tecnologia pelas pessoas físicas? Quais oportunidades a inteligência artificial traz para uma economia com a brasileira que ainda se ressente dos efeitos da crise econômica causada pela pandemia?
Eu vou dar um exemplo do iFood para mostrar como as tecnologias mudam as empresas e onde está o valor disso. No livro falamos sobre três estágios da tomada de decisão. O primeiro é o estágio do chefe, do líder. Temos dentro do iFood, o iFood Shop, que vende insumos para restaurantes. Então, um executivo do iFood Shop acha as maiores cadeias e faz contato. Esse é o estágio em que a pessoa mais bem paga da empresa começa a usar a ferramenta.
O estágio dois é quando ele começa a coletar dados sobre essas interações e a melhorar os seus contatos. Então quem compra de fato? Às vezes, você tem um restaurante menor que é o campeão da região que vai comprar muito de porque você consegue dar uma condição especial pra ele. Então, você começa a usar os dados para ver quem pode ser o seu melhor cliente, mas ainda não mudou muito. A decisão está apenas um pouco mais embasada e os números começam a melhorar.
O terceiro estágio é onde o comércio usa a inteligência artificial para fazer previsões de quem são os melhores clientes, fornecedores, e que tipo de produto pode ofertar para eles. E, a partir disso, ele consegue gerar leads qualificados. E aí você sai em uma situação em que está procurando restaurantes por relacionamento para uma onde começa a olhar para as suas negociações para melhorar, para saber exatamente como cada um vai comprar e consegue criar produtos melhores. Então, a forma como você toma a decisão muda ao longo do tempo. Por isso é um desafio de liderança. O líder que era um ótimo tomador de decisões não necessariamente será a melhor pessoa para tomar uma decisão com inteligência artificial. Mas isso tem um potencial enorme de gerar impacto nesse negócio. Como a tecnologia é genérica, o mesmo processo pode ser aplicado em várias frentes e em vários negócios.
E como se faz tudo isso em um cenário de falta de mão de obra qualificada?
Esse é o segundo maior desafio. O primeiro é fazer com que os executivos concordem com uma visão, ‘vamos naquela direção, vamos usar a inteligência e assim mudar o negócio’. O segundo é: precisamos de gente capacitada para tomar decisão com inteligência artificial. Precisamos de pessoas que entendam para que serve isso e como o negócio pode ser reimaginado. Então vamos pegar esse exemplo do Shop. Muda completamente como o negócio gera leads. Poxa, encontrar leads qualificados é a coisa mais antiga que tem. Hoje, você usa inteligência para qualificar ainda mais, para mudar até a forma como você interage com eles. Se você não treinar os seus colaboradores, você vai ter ir ao mercado buscar. Então, hoje é uma briga muito grande por talentos. Tem muito pouca gente qualificada para tomar esse tipo de decisão. Não estou nem falando de gente para implementar. Esse é o terceiro maior desafio: é preciso treinar gente para, de fato, começar a usar esses modelos de inteligência dentro da empresa.
Se de um lado temos essa defasagem educacional, de outro o Brasil ainda tem gente para ser treinada, diferentemente da Europa, por exemplo, que já fez a virada da pirâmide etária. Você acredita que podemos transformar essa geração em um diferencial competitivo?
Nos últimos sete anos, o mercado de tecnologia no Brasil recebeu muito investimento. Até 2021, todo mês tinha um unicórnio nascendo no País. Mas pessoas aptas a trabalhar com tecnologia continuam sendo as mesmas de 30 anos atrás. Criou-se uma guerra por talentos. E, por isso, os ‘um pouco mais seniores’ acabaram sendo promovidos prematuramente. As empresas cresceram – o que é ótimo -, mas ‘juniorizaram’ toda a estrutura. Então, hoje temos muitos líderes que não estão preparados para treinar as pessoas e fazer com que elas evoluam. O que as empresas têm feito é investir muito em educação interna para fechar as lacunas do ensino que cada um desses colaboradores. Assim as empresas ganham flexibilidade para contratar, mas isso tem um custo alto.
Há muito tempo se fala na importância das soft skills, em que as pessoas são contratadas pelos conhecimentos técnicos e demitidas pelas habilidades emocionais. Isso ficou mais fácil depois da pandemia ou a humanidade aprendeu muito pouco com essa tragédia?
O crescimento é a melhor coisa que tem, é oxigênio para as empresas, dando oportunidade para as pessoas e até os ambientes ficam muito mais legais. Pensando nos profissionais de tecnologia, uma coisa que não é olhada num processo de seleção são as habilidades de comunicação. Existe uma grande dissonância cognitiva entre o time de tecnologia que está focado em como fazer o sistema funcionar e nas entregas, e as pessoas de negócio que estão focadas em resultados. Lançamos o livro para mostrar que esses dois mundos precisam se aproximar. Os executivos precisam entender mais de tecnologia para falar com os cientistas, e esses precisam entender como funciona o negócio. Precisamos de uma língua franca entre eles. A inteligência artificial sozinha não faz nada. Alguém precisa pilotar isso para tomar decisões e, de fato, melhorar o que acontece dentro da empresa e criar produtos fantásticos.
Se a gente pudesse resumir especialmente para os pequenos negócios, ainda com muita dificuldade nesse pós-pandemia, o que a história do iFood ensina?
A inteligência artificial e tecnologia no geral estão ficando cada vez mais acessíveis, mais fáceis de usar e perto dos sonhos dos pequenos e médios empresários. É lógico que não vou falar para o empresário pequenininho sair contratando e investindo em Inteligência Artificial. Mas ele tem que conseguir entender como essas tecnologias podem ser usadas no negócio dele. Então começa por procurar saber o que é isso, para que serve? Como outras empresas próximas a mim estão fazendo? Existem ferramentas para ajudar, mas essa conta tem que fechar. Por isso começa pela liderança. Eles têm que entender fazendo um business case, um estudo de quanto precisa investir e qual o payback esperado. Agora é mais dele tomar essa decisão de ir atrás de começar a conectar os pontos. Ele não precisa mais ser um construtor, ele vai costurar várias soluções do produto dele com várias tecnologias amarradas e isso já vai ser suficiente para começar a gerar impacto.
Até aqui contamos essa história de sucesso do iFood. Mas você não está mais lá, agora é o CDO (Chief Data Officer) do PicPay. Depois de tanto trabalho, não quis desfrutar um pouco?
Fiquei três anos e meio no Nubank. Quando cheguei eram 300 mil clientes e saí com quase 10 milhões. Daí emendei quatro anos e meio no iFood. Estava exausto. Foram quase dois anos para escrever o livro e pensei em tirar um período de férias. Fui para o Paraná para fugir da loucura de São Paulo e lá eu comecei a abrir outras conversas. E aí conheci o fundador do PicPay que me convidou para trabalhar. Terminei o meu sabático e fui. Eu faço o que gosto. Estou muito animado por construir lá uma nova história tão legal como essa.
O que te instiga no mundo das fintechs?
Os serviços financeiros no Brasil ainda têm muito a melhorar na forma como se comunica com o cliente. Aliás, como sociedade, lidamos mal com o dinheiro. Como podemos fazer para que as pessoas tenham uma relação boa com dinheiro, entenderem o que estão fazendo? Eu vejo um mundo de coisas para descomplicar a vida das pessoas. Quero que o cliente seja encantado pela experiência junto ao PicPay.
Nos últimos meses o Chat GPT passou a fazer parte das rodas de conversa e a preocupação com os usos da Inteligência Artificial ganhou contornos éticos. Como você avalia esse momento?
Esse assunto do ChatGPT está muito quente, ainda tem muita coisa que não sabemos como será, além das questões éticas. Quem é o dono do texto com o qual ele foi treinado? Existe, por exemplo, um problema muito sério com imagens. Eu posso pedir que ele desenhe um ambiente no mesmo estilo de um artista famoso. Isso pode ser um problema? O artista deveria ser remunerado por isso? Ainda não temos as respostas. Penso que vamos precisar regular isso de alguma forma, mas ninguém sabe dizer exatamente o quanto em termos de intensidade e o como. O grande desafio da humanidade, talvez, nos próximos anos, é como estimular a inovação e proteger as pessoas ao mesmo tempo. O GPT te ajuda a criar conteúdo, mas você precisa estar lá para pilotar. Vejo como se fosse um estagiário com muita boa vontade, mas você precisa dizer para ele por onde ir.
Ouça a rádio de Minas