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Chegadas e partidas: como a primeira farmácia da rodoviária de BH resiste às transformações do tempo

Há 47 anos na rodoviária de Belo Horizonte, Drogaria resiste ao tempo com atendimento familiar, escuta e memória
Chegadas e partidas: como a primeira farmácia da rodoviária de BH resiste às transformações do tempo
Luiz Antônio Corrêa mostra foto do início de tudo | Foto: Diário do Comércio/ Juliana Baeta

A sala que acomoda a primeira farmácia da Rodoviária de Belo Horizonte (Terminal Rodoviário Governador Israel Pinheiro) ainda é a mesma. Fundada em 28 de junho de 1978, poucos anos após a inauguração do próprio terminal, em 1971, a pequena drogaria intitulada “Drogaria” acompanha o vai e vem de passageiros há 47 anos. É essa também a idade de Cristiano, filho do fundador da farmácia, Luiz Antônio Corrêa, de 77 anos, que nasceu junto com o negócio.

Hoje, pai e filho, ambos farmacêuticos, dividem o balcão da drogaria, que é testemunha ocular das transformações do tempo. Muita coisa mudou e a maioria se adaptou. A necessidade de se comunicar, por exemplo, ainda é vigente agora como era décadas atrás. O item mais vendido na farmácia da rodoviária antigamente era a ficha de telefone para orelhão, depois os cartões de telefone. Atualmente, é a recarga de celular.

“Nós e uma banca da Praça Sete fomos os maiores vendedores de fichas de telefone em Belo Horizonte. Eu comprava sacos e sacos de fichas para vender, cada um pesava 80 quilos. Depois, foi o cartão telefônico. Agora, é a recarga de celular”, recorda Luiz Antônio.

O filho completa: “Ainda vendemos muita recarga, embora isso também já esteja caindo, porque hoje em dia já tem aplicativo para colocar crédito”.

A Drogaria da Rodoviária, como também é conhecida, foi uma das primeiras do segmento a ter um sistema on-line de crédito de celular, algo pelo qual ninguém se interessava na época.

Cristiano Corrêa, originalmente formado na área de computação, foi se interessar pela farmácia mais tarde, para ajudar o pai na Drogaria. A relação da família com a saúde é antiga. O avô dele também era farmacêutico, e o bisavô, pai de Luiz, médico. Mas o negócio surgiu da falta, e não do excesso de referências.

Cristiano e Luiz Antônio Corrêa
Cristiano e Luiz Antônio Corrêa | Foto: Diário do Comércio/ Diário do Comércio

“Foi em outubro ou novembro de 1977. Eu vinha aqui na rodoviária trazer minha mulher e um pessoal que estava lá em casa para viajar e ela estava com dor de cabeça, mas não tinha lugar nenhum aqui para comprar remédio. Fui procurar saber onde tinha farmácia e não tinha. Aí eu decidi colocar”, lembra Luiz.

A partir dali, foram meses até ele conseguir instalar o negócio no local, após muita conversa com a direção da rodoviária, que ficava sob tutela do poder público na época. Mas Luiz insistiu. “Disseram que não havia lugar para colocar uma farmácia. Aqui, inclusive, era uma passagem do terceiro andar, tinha uma escada. E um púlpito embaixo, onde eram anunciados os embarques e desembarques: ‘Senhores passageiros…’. E aí colocamos aqui”, rememora.

Antes de dedicar a vida à Drogaria, Luiz era um “homem da pesquisa”, como se descreve. “Eu sou farmacêutico, bioquímico e químico, e fabricava vacina de cólera na Fundação Ezequiel Dias, em 1972. Também fui chefe de controle de qualidade da Itambé e professor”, enumera.

A localização da farmácia é estratégica até hoje. Quem segue na Praça Rio Branco, acessa a entrada principal do terminal, passa pelo corredor de guichês e informações e entra no espaço onde os passageiros aguardam seus horários para descer para o embarque, dá logo de cara com a drogaria chamada Drogaria. Entre os diversos estabelecimentos comerciais localizados ali, ela fica em um dos pontos centrais. Ao todo, a rodoviária conta com 61 estabelecimentos comerciais de diferentes segmentos.

Origem e resistência

Luiz Antônio aponta foto em preto e branco
Foto: Diário do Comércio/ Juliana Baeta

Na fotografia em preto e branco apresentada por Luiz Antônio, ele aponta a própria pessoa. “Sou eu aqui, nesse mesmo lugar em que estamos, quando ainda estavam fazendo obras na rodoviária. Naquela época, quando começamos, éramos mais ou menos o mesmo grupo que está aqui. Tinha até um engraxate. Chegamos a montar uma associação dos proprietários de negócios mas, depois que o terminal foi privatizado, perdemos a força. É uma empresa, né, ou você aceita as regras ou vai embora. Funciona como um shopping”, detalha Luiz.

O passar dos anos e a chegada de novas tecnologias reduziram também o volume de passageiros que transitam pelo local, como explica Cristiano. “O movimento deve ter reduzido em uns 60%. Hoje em dia o passageiro já chega pronto para viajar, pois tem muitos comércios perto da casa dele, tem aplicativo que entrega tudo, inclusive medicamentos. Então, ele já chega aqui alimentado, com seus remédios na bolsa e até com a lembrancinha que vai levar de presente pra alguém. É por isso que você vê a rodoviária cheia, como está agora, em período de férias, mas são poucos os que entram nos comércios”, diz.

As compras feitas na Drogaria não são por impulso, como em muitos comércios localizados no meio do caminho, mas por esquecimento. “A pessoa está indo viajar e esquece um remédio, por exemplo”, salienta Cristiano.

Drogaria da Rodoviária
Drogaria da Rodoviária | Foto: Diário do Comércio/ Juliana Baeta

Por outro lado, a pequena e tradicional farmácia ainda cativa os consumidores. É o que acredita Luiz Antônio. “Com essa correria de hoje, pode parecer que esse negócio não tem tanto valor como tinha em outras épocas. Mas continua tendo valor, sim. Aqui, você é atendido por um técnico, uma pessoa que sabe o que está fazendo. Nós damos uma assistência individualizada para o cliente. E somos uma família. Eu e meu filho trabalhamos aqui, a mulher dele também é farmacêutica, a minha mulher trabalhava aqui comigo”, defende Luiz.

O outro estabelecimento do mesmo segmento, integrante de uma rede de farmácias que chegou à rodoviária há cerca de dois anos, também divide o movimento com a Drogaria, mas o pequeno negócio é resiliente.

“É claro que a concorrência ajuda a reduzir o movimento, mas eu acho que nosso modelo de negócio, esse tête-à-tête com a pessoa, faz com que a gente consiga sobreviver. Tem clientes que já vêm aqui direto, nem chegam a passar lá, porque gostam desse atendimento personalizado. O mineiro gosta dessa conversa e, ao mesmo tempo, é muito discreto. Então, ele não quer fazer o seu pedido e ser encaminhado depois para outro balcão”, analisa Cristiano.

Inovação e cuidado com o público são diferenciais na Drogaria da Rodoviária

Manter um negócio de pé por quase 50 anos, inclusive vivenciando períodos difíceis no Brasil, como os de turbulentas inflações, foi possível, no caso da Drogaria, por dois motivos: inovação e conhecimento das necessidades dos passageiros. Afinal, foi isso o que motivou Luiz a fundar o negócio.

“Nós fomos uma das primeiras farmácias de BH a ter computador, isso na década de 1980 ainda. Passamos por aquelas crises imensas de inflação sem perder dinheiro, porque eu tinha o computador e ele me ajudava a comprar exatamente aquilo que eu precisava. Era um programa que atualizava os preços e dava o valor de todos os medicamentos que subiam de noite e depois de dia. Várias redes de farmácia quebraram nessa época”, diz Luiz.

Hoje, o horário de funcionamento da farmácia é de 5h à meia-noite. “Ou 15 pras 5h, para ser mais exato, porque aí conseguimos atender os passageiros que vão pegar o ônibus das 5h”, pontua Cristiano.

Drogaria da Rodoviária
Drogaria da Rodoviária | Foto: Diário do Comércio/ Juliana Baeta

“Mas já teve período de férias, com a rodoviária mais cheia, que a gente não conseguia sair daqui antes de 2h da manhã. Já teve gente que agradeceu também por ficarmos abertos até mais tarde, porque a maioria dos estabelecimentos aqui fecha às 21h, 22h. É importante estar disponível para atender os passageiros. Tem gente que passa a madrugada aqui e que dorme aqui, porque o ônibus só vai passar no outro dia ainda”, completa.

“É igual padaria: se o cliente chegar cedinho e o pão não estiver pronto e quentinho, ele não volta mais”, brinca Luiz.

Campeões de venda

Houve um tempo em que água mineral era um item vendido exclusivamente nas farmácias. E tinha até prescrição médica. “É que antigamente poucas pessoas contavam com água tratada, então, às vezes, a pessoa estava com uma disenteria e precisava se hidratar, mas a água sem tratamento não ajudava. Por isso o médico mandava tomar água mineral, vendida nas farmácias”, diz Cristiano.

“Eu cheguei a vender cem caixas de água mineral em um dia. Hoje, vendemos umas três ou quatro. Naquela época, tinha menos carros, menos avião, e o serviço de saúde do interior era pior. Então, qualquer dor de barriga, a pessoa tinha que vir para Belo Horizonte se tratar e parava aqui na farmácia para comprar água”, conta Luiz.

Hoje, além da recarga de celular, os campeões de venda são os remédios para enjoos – item indispensável na mala de muitos viajantes – e estimulantes sexuais.

Falta de fidelização e boas memórias

“Tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais, tem gente que vem e quer voltar, tem gente que vai e quer ficar, tem gente que veio só olhar, tem gente a sorrir e a chorar”, diz a música “Encontros e despedidas”, de Fernando Brant e Milton Nascimento. E é nesse ambiente efervescente de passagem que a rodoviária se torna um bom lugar para os negócios, mas não para fidelizar a clientela.

Rodoviária de Belo Horizonte
Rodoviária de Belo Horizonte | Foto: Diário do Comércio/ Juliana Baeta

“O público é muito flutuante, então é difícil fidelizar. Antigamente, com a falta de hospitais no interior, muitas pessoas vinham pra Capital fazer tratamento, ir a uma consulta, então podia até acontecer isso. Outra coisa que você consegue perceber que mudou é o Carnaval. Antes, até aumentava a frequência dos ônibus para caber todos os passageiros que saíam de BH. Hoje, o fluxo é contrário, muita gente vem pra cá curtir a folia na cidade”, explica Cristiano.

“E muita gente vinha para Belo Horizonte estudar, porque não tinha muita faculdade no interior. Isso também mudou. Então, você não vê mais aquele trânsito de estudantes como havia antes”, completa Luiz.

Outros fatores que ajudaram a diminuir o movimento da rodoviária são as passagens de avião, que ficaram mais baratas com o tempo, os ônibus por aplicativo e até o trabalho remoto. “Antigamente, o pessoal tinha que viajar para outra cidade para trabalhar, então saía domingo à noite e voltava só sexta. Hoje em dia não se vê isso mais; as pessoas têm a possibilidade de trabalhar em home office”, ressalta Cristiano.

Mesmo assim, eles se lembram de “causos” emblemáticos que conheceram na lida com alguns viajantes. Um deles foi um morador da região da Serra do Cipó, que há muitos anos frequentava a rodoviária e gostava de conversar. Ele sempre dialogava com Luiz e a esposa no balcão da farmácia e falava muito da própria mãe.

“Eu não lembro disso porque era muito pequeno, mas lembro da mamãe contando. Esse moço sempre falava da sua mãe, dizia o que ela fez e o que ela não fez. Só que passou um tempão sumido. Quando voltou, muito tempo depois, meus pais foram perguntar como a mãe dele estava. Aí ele ficou sério e explicou que a mãe já era falecida há muitos anos, ele só não tinha entendido isso ainda. Por isso o sumiço. Parece que ele fez um tratamento e finalmente conseguiu lidar com a morte dela”, conta Cristiano.

Outra história é a de uma jovem do interior que viajou para Belo Horizonte só para desembarcar na rodoviária e comprar um teste de gravidez. “Ela morava em outra cidade, Ibirité ou Itabirito, e não queria comprar o teste lá porque todo mundo ia saber. Dessa eu me lembro porque a acalmamos dizendo que ia dar tudo certo, desejamos que o resultado fosse o que Deus quisesse, enfim. Ela foi embora, e depois de 15 anos apareceu com a filha. Que tinha 15 anos. Veio só pra nos contar que o exame deu positivo e apresentar o resultado”, se diverte ao lembrar.

Desse modo, com acolhimento, personalização e inovação, a Drogaria da Rodoviária resiste ao tempo com sabedoria e adaptação às mudanças. Para Luiz, Cristiano e os passageiros de ontem e de hoje, a farmácia deixa de ser apenas um ponto comercial para se tornar travessia de encontros e memórias.


Essa reportagem é a terceira de uma série de três matérias.

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