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Cultura “colaborativa e compartilhada” em xeque

Segundo estudo da FDC, falta de capacidade técnica e gerencial são entraves
Cultura “colaborativa e compartilhada” em xeque
A regra de ouro é o “vamos combinar”, disse Martins, um dos responsáveis pela pesquisa | Crédito: Divulgação/FDC

Entre tantos significados como ajuda, auxílio, contribuição, assistência, apoio, assessoria, assessoramento e prestimosidade, a palavra “colaboração” é descrita no dicionário como “Trabalho que ajuda alguém”. No mundo corporativo, repetida à exaustão nos últimos anos, a colaboração parece ter o seu sentido, muitas vezes, esvaziado.

Ainda assim, os arranjos colaborativos, entre as organizações do Terceiro Setor, as governamentais e as empresas, são uma das maneiras encontradas pelas sociedades para atuar sobre problemas complexos. Mas a construção, gestão, governança e alcance de resultados dessas colaborações também não são simples, principalmente por envolverem organizações de características muito diversas.

Em um trabalho qualitativo profundo – “Gerando valor público por meio da governança colaborativa: uma análise comparativa de sete casos” -, a Fundação Dom Cabral (FDC) realizou uma ampla análise dentro do âmbito da iniciativa Imagine Brasil sobre governança colaborativa, que acaba de ser lançada no formato e-book.

Foram analisados sete casos de parcerias no Brasil, que incluem não apenas experiências de sucesso, revelando questões críticas relacionadas à governança, estratégia, gestão do conhecimento, liderança, participação da sociedade civil e ideologia. A elaboração e os resultados do trabalho têm consequências tanto para o aumento do conhecimento neste campo de estudo como para as práticas de construção, gestão e governança de arranjos colaborativos.

De acordo com o professor da FDC e um dos responsáveis pela pesquisa, Humberto Falcão Martins, a escolha dos casos foi baseada em critérios de diversidade, conveniência e acessibilidade. Eles foram selecionados a partir da realização de 33 entrevistas em profundidade, além da análise de dados secundários de documentos institucionais e websites.

“Palavras como ‘colaboração’ e ‘compartilhamento’, entre outras, se perdem facilmente no âmbito da gestão. Viram gírias gerenciais. O significado começa a se descaracterizar pelo uso indevido e abusivo, mas, ainda assim, elas fazem sentido quando compreendidas e bem utilizadas. A literatura traz três pilares para colaboração: fazer com e não fazer para. É preciso que as partes tenham um ideal em comum e, por fim, que não exista uma relação de hierarquia entre elas. A regra de ouro é o “vamos combinar”. Isso significa que muitas coisas que são feitas em conjunto, não são colaborativas”, explica Martins.

O estudo revela que entre as principais dificuldades para o bom andamento da colaboração não está a falta de recursos financeiros, como seria de se supor, mas sim, a falta de capacidade técnica e gerencial.

A esse gap soma-se ser fundamental o patrocínio das autoridades principais do poder público. Sem isso, o processo não é iniciado ou não tem continuidade. Problemas relacionados ao arcabouço legal também têm grande impacto. O aspecto burocrático legal hierárquico rivaliza, mais do que complementa, a lógica colaborativa.

“O que fundamenta a necessidade das colaborações é a predominância e crescente complexidade dos problemas públicos. Ninguém dá conta de tratar as demandas públicas sozinho. Essa complementaridade é o que chamamos de estado-rede. O estado precisa da capacidade da iniciativa privada e do Terceiro Setor para executar e o que ele precisa é ter capacidade de gerir a política pública. Existem dificuldades de várias naturezas. Nós não temos um legado de capital social como as democracias mais avançadas. Porém, há exemplos interessantes de colaboração desde o início da história do Brasil, como a primeira experiência colaborativa, em 1540, que é a Santa Casa de Recife (PE). Em 1862 D. João VI fez uma ‘PPP (parceria público-privada)’ e entregou o Jardim Botânico para a Associação de Agrônomos do Rio de Janeiro”, destaca.

Os pesquisadores também descobriram que a conexão com um aprendizado positivo não é garantida e que network e conectividade não são uma exigência, mas facilita e acelera o processo, tanto a conectividade com terceiros quanto intragovernamental. E, claro que um alto nível de conflito e desconfiança não é impeditivo, mas dificulta o processo.

Em outro bloco de conclusões, constatou-se que a diversidade fala mais alto quando há uma maior quantidade de atores, ensejando problemas de representatividade no que se refere à capacidade de colocar abertamente suas posições num processo decisório. E a assimetria de informações não é apenas um problema de comunicação que acaba com o compartilhamento, mas é um problema de capacidade de captar, tratar e deter informações e conhecimentos e de utilizá-los em um jogo de poder e para produzir inovações que justifiquem a participação na colaboração. A assimetria de informações afeta direta e incisivamente os processos de feedback e feedforward, sendo determinantes na capacidade de adaptação.

“O combate à Covid-19 foi uma frustração colaborativa. Muita gente querendo doar para o poder público e ele não tinha capacidade para receber. A colaboração público-público foi um desastre. A público-privada se ressentiu de critérios e o que avançou foi o privado-privado. Apesar disso, houve grandes avanços. A sociedade em rede ajudou a romper as barreiras entre a casa e a rua. À medida que os canais se abrem, os problemas se mostram e as oportunidades de colaboração surgem. O setor privado tem muita capacidade institucional, o terceiro setor, em que pese ele ser débil do ponto de vista gerencial, também. Temos avançado”, afirma.

Dar visibilidade aos ganhos ajuda a promover confiança e legitimidade no processo, sendo que o contrário tende a desgastar o processo e levá-lo ao declínio. Esta visibilidade de ganhos é essencial na modelagem das parcerias e é sempre necessária durante seu desdobramento, demonstrando os avanços ao longo do processo colaborativo.

As maiores incertezas estão associadas ao risco da descontinuidade, ao risco ideológico (que impõe barreiras em processos de transições) e ao risco da culpa, que aponta uma “responsabilidade” por fazer ou não fazer a parceria.

“A sociedade em rede tem déficit de capacidade de julgamento. Precisamos estar atentos para os riscos de uma hipertrofia de um dos lados, seja ele qual for. A polarização estatista repressiva, que controla os indivíduos, é um retrocesso civilizatório. Outro risco, quando o mercado cresce desproporcionalmente, é o liberalismo radical, onde não existe a ideia de solidariedade. É o darwinismo social puro. E, se isso acontece com o Terceiro Setor, o risco é a ‘paroquização’ das demandas. E, por fim, a debilidade institucional total e em rede hiper excitada, levando a uma situação de oclocracia – o governo das multidões. Vimos algo nesse sentido em 2013, quando um protesto por causa do preço da passagem de ônibus se tornou um turbilhão de manifestações com pautas que se sucediam sem correlação e coordenação”, alerta o professor da FDC.

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