De Tiradentes para o mundo: cinema é identidade e negócios

Hoje, em Mulheres de Impacto, a CEO da Universo Produção, Raquel Hallak conta um pouco da sua trajetória de 30 anos à frente da produtora responsável pelas Mostras de Cinema de Tiradentes, Ouro Preto e Belo Horizonte.
Mineira de São João del-Rei e formada em comunicação pela PUC Minas, a empresária atua na elaboração, planejamento e execução de projetos, ações e programas culturais, turísticos e empresariais. Entre outras tantas atividades, ela é idealizadora e coordenadora geral do Brasil CineMundi – International Coproduction Meeting.
Há 30 anos teve início a Universo Produção e, há 28 anos, a Mostra de Cinema de Tiradentes. Isso pouco depois do presidente Collor acabar com a Embrafilme e quase colocar o cinema nacional a nocaute. Como a comunicadora virou empreendedora e colocou uma cidade com menos de 7 mil habitantes e onde faltava comida e água no Carnaval no mapa?
É muito bacana a gente poder ver os frutos que a mostra hoje colhe. Eu sou de São João del-Rei, então Tiradentes é uma cidade óbvia para mim. Quando começamos a Mostra, em 1998, era uma cidade com 450 leitos, hoje tem mais de 5 mil. Foi através da Mostra de Cinema que reunimos duas grandes famílias da cidade e falamos “olha, vamos fazer um evento na área cultural com edições anuais. Mas, para isso, precisamos que os empresários locais correspondam porque não tem como manter esse investimento sem rede hoteleira, sem rede gastronômica, sem infraestrutura”.
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Hoje recebemos mais de cinco vezes a população da cidade. Então acabamos nos responsabilizando por muitos serviços de infraestrutura, transporte, limpeza, porque a Prefeitura não dá conta. Nessa trajetória a gente viu nascer um evento que foi também inspiração para outras iniciativas chegarem a Tiradentes e hoje é uma cidade de eventos.
A Mostra de Cinema que se consolidou no Brasil e no mundo como uma referência no cinema brasileiro contemporâneo. Agora em março vamos realizar, pelo 13.º ano consecutivo, a Mostra Tiradentes em São Paulo. E uma das grandes novidades é que a gente está indo para a França também a convite. É um epicentro do cinema mundial nos convidando porque Tiradentes virou essa referência.
Todos os anos a gente reúne uma seleção de filmes que representa uma nova safra da produção e aposta em novos talentos, novas linguagens e novas estéticas, mostrando como que o cinema é possível e como ele acontece no Brasil inteiro. Então, virou hoje um grande ponto de encontro, de formação, de exibição e de reflexão.
Você coordena o Brasil CineMundi, colocando o cinema brasileiro em contato com produtores do mundo inteiro e levando muitos deles para Tiradentes. Conta um pouco desse programa e como você conseguiu levar os primeiros para o interior do interior do Brasil.
Tudo começou em 2009, no ano da França no Brasil. Conseguimos trazer três convidados internacionais do Festival de Cannes, Nantes e Toulouse. E quando eles chegaram a Tiradentes, ficaram impressionados ao ver a efervescência da produção no Brasil. E eu lembro direitinho da expressão “‘”gente, esse cinema não chega na Europa”’”. Era o primeiro espanto deles. Por isso é muito importante incentivar a coprodução.
O Brasil CineMundi é um evento de mercado que incentiva a coprodução para que o nosso cinema possa circular. Ninguém faz filme pra ficar na prateleira e nem pra ficar restrito ao circuito brasileiro. A gente tem que escolher porque os pedidos para vir até Tiradentes e ter essa vivência são muitos.
Eles vêm atrás desse cinema que pode gerar milhões de dólares por parceria. A seleção de filmes é cuidadosamente pensada e atrai cada vez mais a participação internacional. O Brasil CineMundi acontece em dois momentos: na Mostra CineBH, quando apresentamos projetos que ainda estão na fase do argumento, e onde existe mais possibilidade de ter parceiros que querem produzir. E em Tiradentes, apresentamos o filme já na fase de finalização, em que a possibilidade de ter um distribuidor, de ter um recurso para finalizar o filme e para lançar internacionalmente é maior.
Ou você também pode ser escolhido para estrear em um festival internacional. São vários exemplos de filmes que passaram pelo Brasil CineMundi, como o Bacurau, como Belém e Benzinho e Marte 1, da produtora Filmes de Plástico, de Contagem. Descobertos em Tiradentes, eles foram com o curta para o Festival de Cannes e ganharam menção honrosa.
É importante ver o cinema como indústria e gerador de empregos. O cinema que nos representa é parte da indústria do entretenimento, que é limpa e é a que mais cresce no mundo.
Então, essa é uma indústria que tem todo esse potencial econômico e também uma missão de gerar identidade e pertencimento. É o jeito brasileiro de ver o mundo sendo mostrado?
É isso que torna a nossa cinematografia diferente. Os festivais são importantes janelas de difusão dessa produção que o próprio Brasil não vê no circuito comercial. Minas Gerais, com 853 municípios, tem pouco mais de 60 salas.
Mas a gente tem plataformas de streaming? Podemos assistir um filme pelo celular? Sim, mas nada é igual a experiência da tela grande. Então, é muito importante poder ter esse espaço para mostrar as produções que nos representam.
E as mostras têm essa característica comum da exibição gratuita em praça pública. E a gente vê como que faz diferença. Tiradentes não tem sala de cinema. Ouro Preto, tem uma que está fechada para reforma há cinco anos. Belo Horizonte, que é uma capital, como cinema de rua, só tem o Belas Artes – que está pedindo socorro para manter as portas abertas -, o Cine Santa Teresa e o Cine Humberto Mauro, mas o resto são salas em shoppings. Os ingressos são caros, tem o deslocamento e a pipoca é mais cara que o ingresso. O cinema é uma arte que podia ser muito mais acessível.
Em Tiradentes, deixamos um cinema para a cidade em parceria com o Sesi, mas não funciona de forma regular. E cinema é hábito. Então, se não tiver um incentivo, um estímulo permanente, corremos o risco de perder o investimento feito nesses anos todos. Faltam políticas públicas que vão assegurar os festivais que têm calendário regular anual.
Todo ano é aquela saga da gente começar tudo de novo atrás de recurso, inscrever nas leis de incentivo. O Cinema Sem Fronteiras hoje é o principal programa internacional de audiovisual do Brasil.
Virando um pouco a chave, se hoje as mulheres seguem enfrentando machismo e misoginia em todas as esferas sociais, há 30 anos não devia ser melhor. Você viveu algum episódio mais marcante? A empresária precisa ser brava e precisa ser “braba”?
Eu sempre tive esse ímpeto de fazer alguma coisa que pudesse transformar a vida da sociedade. Eu acho que ser empreendedora vem muito dessa vontade de fazer algo para construir um mundo melhor. E todo mundo falava que eu era muito idealista e a coisa que eu mais ouvia dos homens era que não daria certo.
A Universo começa como uma empresa familiar: eu, meu marido e a Fernanda, minha irmã. E eu fui como uma formiguinha, determinada e insistente. Não tenho medo de enfrentar a dificuldade que é ser mulher. Eu acho que, aos poucos, fui conquistando espaço e sendo respeitada pelo trabalho e pelo o que o trabalho se propõe a ser e por agir de uma maneira muito firme.
A mulher que quer empreender precisa ter clareza e saber que vai enfrentar os desafios financeiros e os desafios estruturantes de manter uma empresa. Temos uma sensibilidade e um olhar sistêmico para tudo que a gente faz, que permite, inclusive, sermos diferentes.
Além de uma empresa familiar, é uma empresa familiar mineira. É possível escapar da mineiridade?
Sou mineira até a morte. Não quis sair daqui e estou fazendo o processo inverso, trazendo convidados internacionais para conhecer Minas. Quando começamos, ninguém sabia onde era Belo Horizonte e, muito menos, Tiradentes. Então, a gente fez também todo um movimento de expansão, de projeção de Belo Horizonte, enquanto uma capital que tem vocação para a economia criativa. Estamos, agora, canalizando para o Ouro Preto, porque lá é uma cidade também universitária e estamos lutando por um curso de cinema na UFOP.
Isso atrai negócios também. É importante falar disso. Quem vem aqui pra ver um filme? O que tem de diferente que eu vou poder filmar em Belo Horizonte e não na Colômbia ou na Argentina?
Não dá para conversar com você e não falar do fenômeno “Ainda estou aqui”. Como fazer para o cinema nacional capitalizar esse sucesso e não viver mais apenas de efemérides?
A gente não tem como ter um “Ainda estou aqui” todos os anos sem ter uma política pública. Eu acho que o grande serviço que este filme pode fazer é trazer a regulamentação do streaming. Esse é um passo importante. Precisamos das plataformas para criar um fundo permanente de investimento no cinema.
Se tivermos uma política de estado que não muda a cada governo, os investimentos continuam em todas as áreas, inclusive capacitação, porque ninguém vai investir em uma indústria se não tiver mão de obra. Precisamos de recursos para a produção e distribuição. Temos que pensar o ecossistema do audiovisual como um todo. E isso só vai acontecer se a gente pensar no cinema como indústria com polos regionais.
Então, um filme brasileiro, por melhor que ele seja, se não tiver recursos, ele não vai chegar a uma premiação internacional. Para um filme de baixo orçamento é praticamente impossível. Mas mantemos o trabalho e a esperança. Esse ano a Filmes de Plástico vai oferecer um prêmio de R$ 40 mil na CineBH para que um roteiro selecionado seja desenvolvido. Eles queriam retribuir um pouco do que a Mostra de Cinema de Tiradentes fez por eles. Isso é incrível e transformador.
Para finalizar, você pode indicar uma ou duas mulheres que você admire, que te inspiram, pra gente seguir na rede social ou ler uma biografia?
Cada vez mais admiro a deputada federal Érika Hilton, do PSOL, e que foi eleita a melhor deputada federal em 2024. É uma deputada trans que tem feito um trabalho magnífico em prol das mulheres. Vale a pena conhecer um pouco do muito que ela está fazendo. Eu a vejo falando naquela tribuna e percebo como é iluminada na missão dela. Quando a gente descobre a nossa missão, a gente se realiza também.
E conheci recentemente, pelas minhas funcionárias, a Nath Finanças. Achei muito interessante como ela ensina de uma maneira fácil as mulheres a lidarem com o dinheiro.
E não posso deixar de falar da minha origem, porque a minha mãe é uma mulher inspiradora, uma mulher de coragem. Ela é a mais velha de oito irmãos em uma família árabe, em que o homem sempre teve privilégio em tudo. E ela rompeu paradigmas. A minha avó rompeu um pouco, mas trouxe para o corpo várias doenças, porque não conseguia, muitas vezes, dar conta e minha mãe já abre essa expansão.
Eu venho dando continuidade e a minha filha, que está com 21 anos, vem rompendo mais ainda, porque ela começou a empreender com 16 anos.
Então, além dessas duas figuras públicas, eu não podia deixar de falar sobre a minha origem, e principalmente da minha mãe, que é essa inspiração de coragem e determinação.
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