Economia das favelas ajuda a regenerar o planeta

O Dia da Terra, comemorado em 22 de abril, foi concebido nos Estados Unidos em 1970. O alerta para olharmos para o planeta com mais cuidado feito há mais de 50 anos segue repercutindo, porém, sem alcançar os efeitos desejados. Cuidar do planeta significa ter responsabilidade com o meio ambiente e com as pessoas. Impõe a todos – governos, empresas e sociedade civil – olhar pelos mais frágeis e dar oportunidade para que todos se desenvolvam e realizem plenamente suas potencialidades. Ignorar as pessoas, especialmente as mais vulneráveis, é também condenar o planeta à degradação. Por isso o DIÁRIO DO COMÉRCIO nesse Dia do Planeta abre espaço para as periferias e as favelas com toda a potência da economia que existe dentro delas e (ainda) é ignorada por boa parte da sociedade.

Favelas são, conceitualmente, assentamentos informais populares com grande densidade demográfica localizados em periferias dos centros urbanos. São resultados de um processo de urbanização desordenado somado à segregação social que afasta os grupos mais vulneráveis.
Segundo projeções da ONU-Habitat 2022, cerca de um bilhão de pessoas vivem atualmente em favelas e assentamentos informais em todo o mundo. Esse número pode estar subestimado, frente às dificuldades de captação dos dados em diversos países e à dinamicidade de formação e dispersão desses territórios. Ainda de acordo com a ONU-Habitat, em 2021, cerca de 56% da população do planeta vivia em áreas urbanas, e essa taxa deve subir para 68% em 2050.
De acordo com a pesquisa Data Favela 2023, na última década o total de comunidades distribuídas pelos estados brasileiros, sobretudo em capitais, dobrou. São 13.151 aglomerados subnormais – ocupações irregulares em terrenos de propriedade alheia, de origem pública ou privada, com o fim de habitação. Se as favelas brasileiras formassem um estado, seria o terceiro maior do Brasil em população. São estimados 5,8 milhões de domicílios em favelas, com 17,9 milhões de moradores.
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Esse enorme contingente populacional, muitas vezes visto como uma massa disforme e indistinta, sem identidade, é múltiplo e potente. A renda movimentada pela população dessas comunidades, segundo a pesquisa, também aumentou, e quebrou a barreira dos R$ 200 bilhões, R$ 12 bilhões a mais em relação ao ano anterior injetados pelas favelas na economia brasileira.
Para a professora convidada da Fundação Dom Cabral (FDC), executiva na área de tecnologia e ativista, Grazi Mendes, a favela precisa ser entendida dentro das complexidades e desigualdades do Brasil.
“Existe um imaginário que associa a favela à fome, pobreza, assalto, tráfico. E tem a realidade. Nas favelas o imaginário tem a ver com superação, identidade, família. Lutamos para mostrar que a favela não é carência, é potência. É gente que cria, que inova. Movimenta muito, são R$ 200 bilhões. Se ignoramos isso, desperdiçamos talentos e potencial de consumo. As empresas que entenderam que estamos falando de negócios, de inovação, já estão lucrando. O progresso só existe quando as pessoas melhoram de vida”, explica Grazi Mendes.

Do total, 5,2 milhões de moradores das favelas já empreendem, 6 milhões sonham ter um negócio próprio, e sete em cada dez pretendem abrir o empreendimento dentro da favela. Apesar dos números expressivos, apenas 37% dos empreendimentos são formalizados e têm CNPJ.
Esse apetite pelo empreendedorismo, porém, está muito mais ligado à necessidade do que ao desejo, à oportunidade ou ao talento. Sem a oportunidade de empregos formais no “asfalto”, resta, principalmente às mulheres, trabalhar “por conta própria”. O verbo “empreender”, embora comece a circular com mais naturalidade nesses espaços nos últimos anos, ainda é um termo quase desconhecido ou é entendido como algo que é feito sempre por outras classes sociais mais favorecidas. É o “isso não é para nós”.
A sétima edição da pesquisa “Mulheres empreendedoras e seus negócios”, realizada pelo Instituto Rede Mulheres Empreendedoras (IRME), em 2022, mostra que elas são, em sua maioria, negras, mães e da classe C.
O levantamento aponta uma proporção de 60% de mulheres negras entre as empreendedoras brasileiras. As frações de mulheres que abriram negócios por necessidade e por oportunidade, embora sejam as mesmas (46%), apresentam perfis bem diferentes de empreendedoras.
As que afirmaram ter empreendido por oportunidade são principalmente das classes A e B (67%) e não negras (54%), com ensino superior (64%), e abriram seus negócios há mais de cinco anos (55%).
Por sua vez, as mulheres que se tornaram empreendedoras por necessidade estão, sobretudo, nas classes D e E (71%), e a maioria delas é negra (52%). Do total de negócios empreendidos por mulheres há até dois anos, 42% surgiram por necessidade, e 45% foram criados por empreendedoras que vivem em favelas ou comunidades.
“O conhecimento que vem das bases, da margem não é valorizado. Isso deixa de fora uma série de habilidades que são fundamentais para o mercado de trabalho. A gambiarra é uma tecnologia social. São pessoas que buscam soluções para problemas reais. São extremamente criativas, mas elas não têm acesso ao investimento, ao capital social. As mulheres são a força motriz do País e do empreendedorismo nas favelas. As primeiras empreendedoras foram as baianas do acarajé, as negras de ganho. Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura se move”, afirma Grazi Mendes
Falta de capacitação e saúde mental ainda dificultam desenvolvimento
Criado há 10 anos no Morro do Papagaio (Aglomerado Santa Lúcia), na região Centro-Sul, o Fa.Vela é um hub de educação e aprendizagem empreendedora, inovadora, digital e inclusiva, que tem como missão promover a diversidade e o desenvolvimento social, econômico e ambiental por meio do empoderamento de grupos e territórios vulnerabilizados.
Para isso, oferece educação empreendedora e aceleração de negócios e projetos, atuando no desenvolvimento de metodologias de ensino, trilhas de inovação e impacto social elaboradas para preparar as pessoas para o futuro do trabalho.
De acordo com a cofundadora e diretora-presidente do Fa.Vela, Tatiana Silva, a rede é um negócio de impacto social liderado por pessoas negras, LGBTs e periféricas que contribui, especialmente, para o sucesso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 1: “Erradicação da pobreza”, e 4: “Educação de Qualidade. Até agora, mais de mil pessoas já foram impactadas diretamente, mais de 600 empreendedores já foram acelerados em mais de 400 iniciativas.
“Quando eu e o João (Souza, cofundador e diretor de Novos Negócios e Parcerias do Fa.Vela) fomos estudar fora, vimos que esse esforço de transformação social, pra ser efetivo, tem que ser ‘nós por nós’. Vimos movimentos internacionais que não geravam tantos resultados efetivos por serem feitos de cima pra baixo, sem atender as demandas das pessoas. Voltamos com o desejo de botar a mão na massa. Na época, tínhamos conhecido no governo do Estado a lógica dos programas de aceleração para novos negócios de base tecnológica. E por que aquilo não poderia ser levado para a economia das periferias? Isso faria toda a diferença”, relembra Tatiana Silva.
E realmente fez. Foi assim que nasceu o primeiro programa de aceleração de negócios na favela: uma jornada que oferecia saberes estratégicos para que as pessoas conseguissem modelar os seus negócios de uma forma sustentável. Depois dele, vieram outros, entre eles, o Corre Criativo, que já está na sétima edição, voltado especialmente para os jovens.
E para se manter, o Fa.Vela apostou em fazer o que prega e se profissionalizou, criou serviços capazes de gerar renda para se manter e ampliar a atuação que hoje se espalha pelo Brasil.
“Diante da necessidade de captar recursos, começamos a ir para a formalização. A gente precisa ter lucro pra continuar existindo, para reinvestir. Conseguimos precificar bem os serviços e hoje temos uma equipe de 27 pessoas, todas celetistas. Acabamos virando um polo de oportunidade para outras pessoas que são parceiros e fornecedores. Pessoas que passaram por aqui voltam como parceiros. Isso demonstra a importância de desenvolver lideranças. Não tem como ter um Fa.Vela em todos os lugares. Esses líderes serão agentes de transformação onde estiverem”, destaca a diretora-presidente do Fa.Vela.
Para conseguir empreender, além de capacitação, as pessoas precisam também de autoconfiança e controle emocional. O tema da saúde mental ganhou espaço dentro das empresas e na mídia, especialmente a partir da pandemia de Covid-19, em 2020. Mas nas favelas, diante de tantas pressões, especialmente a econômica, o assunto muitas vezes é deixado de lado.
A partir da sua experiência com atendimentos clínicos, a psicóloga Ana Novais criou a Serh Psicologia – Desenvolvimento de Negócios e Pessoas. O serviço combina aspectos da psicologia com foco no desenvolvimento de mulheres empreendedoras.
“A montagem da consultoria vem da minha experiência com um projeto ‘Humanamente’. Ouvi centenas de histórias. A escuta chegou e levou o sujeito a entender que ele também tem direito à saúde mental. O empreendedor precisa abraçar-se com quem ele é, descobrir a sua essência. É o brand emocional, para usar a própria história como estratégia de negócio. A segurança psicológica muda a lucratividade. Isso sem abrir mão dos princípios. Quando você idealiza somente o sucesso e não se prepara para os desafios do meio, não consegue lidar com as demandas do outro”, destaca Ana Novais.
Negócios periféricos estão na pauta da FDC
Em setembro de 2023, a Fundação Dom Cabral inaugurou a primeira unidade “Espaço Empreendedor Pra Frente”, na região do Barreiro. O segundo foi na região de Venda Nova, em janeiro de 2024. O objetivo dos espaços é alavancar o empreendedorismo popular por meio do desenvolvimento comunitário e econômico local. A previsão é de que doze hubs presenciais de empreendedorismo popular sejam lançados, até 2026, por todo o País. Cada espaço capacita um educador social, que recebe salário por um ano da Fundação, indicado pela comunidade local para acompanhar e facilitar a jornada do empreendedor.

A gerente de projetos da Educação Social da Fundação Dom Cabral, Vanja Abdallah Ferreira, explica que esses espaços dão concretude ao Movimento Pra Frente, lançado em 2021, como plataforma on-line.
“No lançamento do Movimento sentimos que falar com a população é um dos nossos maiores desafios. Não tínhamos legitimidade para falar com as pessoas da periferia. Sem contato com as lideranças locais para falar da FDC, da plataforma, não conseguiríamos engajamento. Acreditamos na educação com tecnologia e temos uma rede de parceiros que permite o acesso. Começamos capacitando pessoas já interessadas em educação para que elas fossem multiplicadoras. Sentimos a necessidade de customizar para cada ecossistema. A favela tem uma linguagem, os catadores de papel têm outra. Se a pessoa não se reconhece, fica uma distância muito grande. A Fundação está aprendendo muito com os parceiros”, avalia Vanja Ferreira.
Outra ação importante da FDC para fomentar a economia nas periferias é a Escola de Negócios da Favela (ENF), lançada em 2022, em parceria com a Central Única das Favelas (Cufa), em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). A iniciativa oferece por meio de uma plataforma on-line conteúdos específicos para cada tipo de empreendimento, utilizando a linguagem do cotidiano. O público-alvo da Escola de Negócios são moradores das favelas brasileiras, que já tenham seu próprio negócio, independentemente do estágio de maturidade.
Já no primeiro ano de atuação, a Escola recebeu o prêmio Excellence in Pratice, da Fundação Europeia para desenvolvimento da Gestão (EFMD), pelo modelo de inovação em ecossistema usado na educação executiva de nano e microempreendedores de periferias e de favelas no Brasil.

“Este primeiro ano foi importante para construção e entendimento da base de empreendedores da ENF, o Brasil é um País de dimensões continentais e cada região tem suas particularidades e é bastante importante conhecer quais são, para termos capacidade de entregar trilhas educacionais com qualidade e que conversem com as diferentes realidades. Além disso, o time também trabalhou no desenvolvimento da plataforma de educação gamificada. Foi um ano exitoso e começamos 2024 ainda mais maduros e com um produto que faz sentido para os empreendedores e para o mercado. Quem está no corre já tem uma vida superagitada, sabe que educação é importante, mas tem dificuldade de encaixar mais uma dinâmica na rotina, por isso, construir um senso de comunidade com estratégias gamificadas é superimportante para que o empreendedor se engaje na jornada de formação”, destaca o fundador da Cufa e fundador da Favela Holding, Celso Athayde.
Tecnologia dinamiza economia
Iniciativa voltada para a formação de jovens programadores, de 15 a 24 anos, vindos dos aglomerados Barragem Santa Lúcia, Morro do Papagaio, Vila São José, Conjunto Santa Maria, Vila Leonina, Vila Estrela, Morro das Pedras e região, em Belo Horizonte, o FavelaWare foca na formação técnica (com aulas de lógica básica, low code, back end e front end) e na formação de soft skills (comunicação, desenvolvimento pessoal, trabalho em equipe etc.), com aulas ministradas por especialistas na área.
O FavelaWare é uma iniciativa da Mundiale, do Ecossistema Ânima Educação e das Obras Pavonianas. Alunos dos cursos ligados à tecnologia da informação da instituição de ensino são os instrutores do curso, que conta como carga horária de extensão.
Segundo a idealizadora e orientadora do projeto, Rafaela Moreira, o curso, que está na sua segunda edição, tem como pilares:
- Incentivo ao ingresso de jovens na área da tecnologia da informação;
- Desenvolver competências e habilidades iniciais relacionadas à área;
- Apoiar a inclusão de jovens talentos no mercado de trabalho.
“A ideia era atender os jovens, mas a procura nos fez abrir vagas também para pessoas mais velhas. Chama a atenção também a grande procura por mulheres. Todos os participantes recebem auxílio transporte e alimentação, além de atendimento psicológico. Eles desenvolvem um projeto para ser apresentado à Mundiale. Os melhores foram selecionados e cinco alunos da primeira turma foram contratados. Esse projeto é apaixonante e muda a vida de quem dá aula também. Temos instrutores que vieram desse tipo de situação e estão retribuindo o que tiveram da sociedade”, completa a orientadora do FavelaWare.
Representatividade das favelas ajuda a regenerar o planeta
Agir sobre a realidade das periferias e favelas, respeitando e fomentando suas características e potencialidades, significa não apenas fazer a economia girar, mas também, melhorar e proteger as condições de vida de todos e do próprio planeta.
Significa também atender a vários ODS, entre eles:
- ODS 1: Erradicação da Pobreza
- ODS 3: Saúde e bem-estar
- ODS 4: Educação de qualidade
- ODS 6: Água potável e saneamento
- ODS 8: Trabalho decente e crescimento econômico
- ODS 11: Cidades e comunidades sustentáveis
- ODS 13: Ação contra a mudança global do clima
- ODS 16: Paz, justiça e instituições eficazes
- ODS 17: Parcerias e meios de implementação.
Todo esse esforço está alinhado com o Movimento Minas 2032 – pela transformação global (MM 2032). Liderado pelo DIÁRIO DO COMÉRCIO, o MM2032 propõe uma discussão sobre um modelo de produção duradouro e inclusivo, capaz de ser sustentável, e o estabelecimento de um padrão de consumo igualmente responsável, com base nos ODS da Organização das Nações Unidas (ONU), preconizados desde 2015.

Há 30 anos atuando como ativista e empreendedor social, o presidente global da Cufa, Preto Zezé, destaca a importância da representatividade que cada uma dessas iniciativas ajuda a fortalecer. A mudança na forma como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) se refere às favelas a partir do Censo 2022 é apontada como um marco na compreensão da sociedade sobre as favelas.
O Instituto substituiu a denominação dos “Aglomerados Subnormais”, adotada desde 1991, por “Favelas e Comunidades Urbanas”. Com isso, o IBGE retoma o termo “Favela”, utilizado historicamente pelo órgão desde 1950, junto ao termo “Comunidades Urbanas”, de acordo com identificações mais recentes. Não houve alteração no conteúdo dos critérios que estruturam a identificação e o mapeamento dessas áreas e que orientaram a coleta do Censo Demográfico 2022.
“Ficamos muito felizes com essa decisão do IBGE de voltar a chamar as comunidades de favela. Agora vamos tirar a favela do lugar do problema, da carência. Fortalecemos os nossos argumentos. A favela se vira. As pessoas empreendem porque precisam. Para isso, elas precisam ter acesso ao crédito, aos órgãos públicos, à escola… Queremos que as empresas não olhem pra gente nas favelas só como consumidores, mas sim como protagonistas, não como coadjuvantes na economia do Brasil. Criamos a Frente Parlamentar das Favelas, com mais de 270 deputados. O debate tem que ir para lá, para o centro do poder. Não aceitamos mais ter uma participação limitada. Todo mundo fala da Amazônia – isso é superimportante -, mas ninguém fala do saneamento básico, por exemplo. Isso também é meio ambiente, diz respeito ao planeta. Existe um movimento que não para mais. Uma série de questões que a favela pode apontar um repertório de soluções para o País”, conclama Preto Zezé.
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