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Cidade vertical: Edifício Maletta luta para reerguer protagonismo histórico

Empreendedores se articulam para reerguer um dos espaços mais democráticos da cultura de Belo Horizonte
Cidade vertical: Edifício Maletta luta para reerguer protagonismo histórico
Foto: Diário do Comércio/Leonardo Morais

Muito mais do que um grande prédio, o Condomínio Arcangelo Maletta preenche há décadas a história cultural de Belo Horizonte como um espaço democrático de convivência e memória. Ao longo dos anos, o local, que se firmou como um dos principais redutos da cultura mineira – com bares, restaurantes, sebos e lojas de vinis – hoje luta para se reerguer, sem deixar de lado suas raízes.

Construído entre 1957 e 1961, no local que abrigava o antigo Grande Hotel, o espaço se destacou pela proposta moderna de unir empreendimentos residenciais e comerciais em um mesmo edifício. Os corredores da galeria abrigam, até hoje, uma das maiores concentrações de livrarias e sebos de Belo Horizonte e, ao entardecer, as varandas se transformam em um destino gastronômico que une tradição e tendências contemporâneas.

O prédio possui três blocos com 19, 17 e 30 andares, onde cerca de 5 mil moradores e frequentadores circulam diariamente no local. Ao todo, são 319 apartamentos, 642 salas, 72 lojas e 74 sobrelojas que se redefinem ano após ano acompanhando a evolução do hipercentro e da sociedade mineira.

Cantina do Lucas se reinventa mantendo tradições

restaurante em Belo Horizonte
Foto: Diário do Comércio / Leonardo Morais

Entre tantas transformações ao longo das décadas, a Cantina do Lucas é a única que permanece no mesmo local desde a inauguração. Hoje, é o único comércio do Maletta tombado como Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, acumulando prêmios como um dos restaurantes mais tradicionais da capital mineira.

O segredo da longevidade, de acordo com o gerente da Cantina do Lucas, Antônio Mourão, é a união entre manter as tradições ao mesmo tempo em que se aplicam inovações para acompanhar as mudanças do mercado. “Durante o ‘boom’ dos self-services em Belo Horizonte, investimos em pratos que competissem com o serviço, além de expandirmos nosso cardápio de massas artesanais, com opções como Lasanha, Ravióli e Canelone”, explica.

Mesmo inovando, o local manteve itens clássicos que atravessaram gerações, como o Filé à Parmegiana, carro-chefe da casa. “Apesar do sucesso dos lançamentos de novos pratos, a Cantina se mantém pela tradição”, destaca.

Para Mourão, a pandemia foi um dos momentos mais desafiadores zerando, de um dia para o outro, o faturamento do negócio. Como resposta, a Cantina investiu fortemente em delivery, que rapidamente se tornou sucesso absoluto, respondendo hoje por uma fatia considerável dos negócios do estabelecimento.

Além de operar no Maletta, foram abertas duas cozinhas exclusivas para entregas, com projeto para inaugurar uma terceira unidade no bairro Castelo ainda neste ano. “Essa estratégia não apenas garantiu nossa sobrevivência em tempos desafiadores, mas também ampliou o nosso alcance”, pontua.

Sebo Poiesis atrai leitores que buscam experiências além da compra

Foto: Diário do Comércio / Leonardo Morais

Inaugurado em 2020 – em plena pandemia -, o sebo Poiesis vem conquistando um movimento expressivo a cada ano, especialmente aos finais de semana, quando atrai leitores e turistas de diferentes países. Em quatro anos de atuação no Edifício Maletta, o espaço tornou-se uma referência para os amantes de livros, oferecendo uma experiência de conexão e interação que vai além da leitura.

O negócio é resultado da paixão por livros do fundador Daniel Pitta, que decidiu transformar um hobby em negócio a partir da loja de origem familiar. “Não foi um projeto planejado, mas algo que aconteceu naturalmente a partir de um desejo despertado em mim durante algumas viagens”, conta.

Apesar de um quarto das vendas serem realizadas em plataformas on-line como Shopee, Amazon e Estante Virtual, o ponto físico abriu portas para a aquisição de livros e maior conexão com os clientes. “Hoje não abrimos mão do nosso espaço físico, que é essencial para manter a qualidade do nosso acervo, que hoje conta com 25 mil exemplares”, destaca Pitta.

Entre as raridades, destacam-se edições de colecionador, como obras de Álvares de Azevedo, Franz Kafka, além de livros dos séculos XVIII e XIX. Com isso, o espaço busca se firmar também como uma livraria de exemplares raros, com títulos que dificilmente se encontram no mercado, desmistificando a ideia de que sebos competem em preço com livrarias de shopping e e-commerce.

O espaço, que luta diariamente para se manter devido ao alto custo do negócio, enxerga com otimismo o futuro e a relevância dos sebos para a cena cultural da cidade. “A compra física é um programa onde conhecemos pessoas, interagimos com livros e revistas, de antiguidades a atualidades, e descobrimos novas histórias”, conclui o proprietário.

Gráffica Bar preserva memória em espaço moderno e sustentável

Foto: Diário do Comércio / Leonardo Morais

Natural do interior de Minas, o comércio sempre esteve presente na vida da empreendedora Marilda Ribeiro, que chegou a Belo Horizonte nos anos de 1980 em busca de novas oportunidades. Foi no Edifício Maletta que ela conseguiu o primeiro emprego em uma gráfica e, posteriormente, residiu no prédio por um determinado período.

“O Maletta tem a grandiosidade de uma cidade e está fortemente ligado à minha história. Aqui me sinto em casa, sou amiga de todos e parte desse lugar”, afirma.

Na década de 1990, o antigo proprietário do espaço ofereceu a ela a oportunidade de adquirir a gráfica, onde veio a administrar de forma bem-sucedida até 2016. Com as transformações tecnológicas, a empreendedora precisou se adaptar e com isso transformou o espaço em um gastrobar, o Gráffica Bar.

Mesmo com fortes mudanças, a memória da gráfica se mantém presente negócio – que fez questão de reaproveitar materiais como gavetas e máquinas tipográficas na decoração, além de utilizar cores inspiradas na antiga produção de impressos. A sustentabilidade também é destaque na geração de energia, já que o bar conta com produção 100% renovável gerada por placas fotovoltaicas da empreendedora.

Agora dedicado à gastronomia, o Gráffica Bar oferece um cardápio variado que inclui petiscos, como bolinhos de costela e bacalhau, camafeus de camarão com geleias e molhos caseiros, e pratos mais elaborados como costela texana e filé ao gorgonzola. Há também opções veganas, como almôndegas e falafel, reforçando a diversidade de sabores para todos os públicos.

Parte dos ingredientes, como geleias e molhos de jabuticaba, cajá-manga e acerola são produzidos na fazenda da proprietária, garantindo qualidade e toque artesanal aos pratos.

Maletta Criativa une mulheres com o mesmo propósito

Foto: Diário do Comércio / Leonardo Morais

Há oito anos, a empreendedora Soraya Mendonça iniciou no ramo de brechós em uma loja de bairro em Belo Horizonte e, posteriormente, teve a oportunidade de levar seu negócio para o Edifício Maletta, participando de uma collab que transformou sua trajetória.

Hoje, Soraya Mendonça é idealizadora do espaço Maletta Criativa, que reúne empreendedoras de brechós em diversos segmentos, o que permitiu ampliar o público, oferecendo da moda infantil ao estilo urbano. “O Maletta é um edifício que abraça todo tipo de público, todos se sentem acolhidos. Vejo que a receptividade ao mesmo estilo de negócio é bem positiva”, destaca a empreendedora.

Além do brechó, Soraya Mendonça é idealizadora da feira “Circuito Maletta”, que apesar dos desafios enfrentados para a realização, se firmou como uma importante ação de visibilidade para o espaço. O evento de moda sustentável, que começou com cinco participantes, cresceu rapidamente e, hoje, conta com 70 inscritos que movimentam o local.

“Notamos que iniciativas como esta, além de beneficiar microempreendedores locais que participam da feira, ajudam a trazer gente nova para outros estabelecimentos, como sebos, bares e restaurantes. A feira também vem contribuindo para desmistificar visões deturpadas sobre o prédio, aproveitando ao máximo o potencial cultural e comercial do Edifício Maletta”, avalia.

“Com amor, Nani” é inspirado em cartas trocadas pelos pais

Foto: Diário do Comércio / Leonardo Morais

“Com Amor, Nani” é um dos mais recentes negócios do Edifício Maletta. O espaço, idealizado pela chef de cozinha Ana Nogueira (Nani), é a realização de um sonho da profissional de trabalhar com comida afetiva, inicialmente focada em sobremesas.

A marca, inspirada em uma dedicatória, surgiu a partir da ideia de compartilhar as cartas de namoro dos pais, que durante dois anos trocaram mensagens um com o outro. “Resgatei as cartas de namoro dos meus pais e essa história de amor será o tema principal da loja”, detalha.

Hoje, além do tradicional café, o local serve salgados, antepastos, bolos, brownies, brigadeiros, dentre outros que valorizam ingredientes nacionais. “Abri tem duas semanas e a aceitação está sendo ótima, já que o prédio carece de espaços que vendem doces e cafés. Fui muito bem recebida e já tenho até alguns clientes fiéis”, destaca.

Para Nani, o futuro é promissor e a união entre os empreendedores do Maletta é essencial para que o prédio resgate o prestígio histórico. “Para os próximos anos, vejo um Maletta cheio de gente, espero que as pessoas tenham vontade de vir, conhecer, provar, ambientar e para isso precisamos de um prédio bem cuidado e padronizado. Temos que nos unir aqui dentro para fazer isso acontecer”, conclui.

Estrela Papelaria adota o mesmo nome em homenagem ao negócio da família

Foto: Diário do Comércio / Leonardo Morais

Inaugurada há um ano pela proprietária Vanessa Cardoso, a “Estrela Papelaria e Presentes” tem se destacado no edifício com serviços de personalização e “papelaria fofa”. A loja, comprada pelo pai em 1988, anteriormente abrigava uma comercializadora e assistência técnica de máquinas de escrever, a “Estrela Máquinas”.

Inicialmente, a ideia era que pai e filha dividissem o espaço, porém, por questões de saúde, Vanessa Cardoso precisou assumir sozinha o negócio. “Há um ano, meu pai fechou a loja para cuidar da saúde e, em janeiro, decidi abrir minha loja física para atender a demanda do edifício”, detalha.

Com cadernos, canetas e outros artigos, o espaço é a única papelaria do Maletta e, logo, se tornou um ponto de referência para quem busca, principalmente, por variedades e praticidade.

A empreendedora, que frequenta o local desde criança, possui uma memória afetiva com espaço, que considera como de grande relevância para a cultura de Belo Horizonte. “Foi no Maletta que criei parte das minhas memórias de infância e fui uma das poucas pessoas que andou nessa escada rolante – a primeira da Capital – que há mais de uma década não funciona”, declara.

Comunicação, infraestrutura e segurança: desafios internos prejudicam negócios

Foto: Diário do Comércio / Leonardo Morais

Apesar do forte apelo histórico, os empreendedores do edifício são unânimes: existem desafios internos que precisam ser solucionados para que o Maletta retome o protagonismo de décadas passadas e avance ainda mais. O desejo é que o prédio se inspire em projetos bem-sucedidos, como o Mercado Novo, em Belo Horizonte, e o Copan, em São Paulo.

Segundo Vanessa Cardoso, o maior obstáculo tem sido a atual administração do Maletta, que prejudica não apenas o fluxo de clientes, mas também o funcionamento das lojas. “Aos domingos, por exemplo, apenas o térreo está liberado para abrir, enquanto o comércio no segundo piso permanece trancado e com as luzes apagadas”, denuncia. Aos feriados, a empreendedora queixa de horários de funcionamento incertos, sem qualquer sinalização ou organização por parte da administração.

Atuando no térreo, o gerente da Cantina do Lucas ressalta que, para ele, essa diferenciação entre os comércios do térreo e superiores é incoerente. Apesar disso, ele é otimista e acredita que o edifício tende sempre a melhorar e, em breve, voltará a ser como antes. “Quando inaugurou, o Maletta provocou um boom na cidade. À noite recebíamos artistas, como Clube da Esquina na boate berimbau, que tocava jazz e bossa nova”, relembra Mourão.

Outros pontos críticos mencionados passam pela segurança e ausência de comunicação interna. Embora paguem a mesma taxa de condomínio, os empreendedores do segundo piso não contam com vigilância fixa e novos projetos são difíceis de serem aprovados. “Hoje notamos que é difícil implementar projetos inovadores, falta flexibilidade. É preciso unir forças e melhorar a interação com a administração, aproveitando ao máximo o potencial cultural e comercial do prédio”, conclui Soraya Mendonça.

Procurado pela reportagem presencialmente, via e-mail e por telefone, o atual síndico, Amauri Reis, não retornou para maiores esclarecimentos sobre a modernização do edifício e os atuais desafios enfrentados no local.

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