Edital valoriza literatura de mulheres negras em Minas

O edital de seleção de obras literárias e científicas de autoras negras mineiras, iniciativa do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) em parceria com a Fundação Clóvis Salgado (FCS), recebeu 85 propostas entre os dias 22 de julho e 31 de agosto de 2025. A ação, fruto do programa antirracista Sobre Tons, do MPMG, chega à fase final com a premiação das selecionadas: Ana Paula dos Santos, Samara da Silva Marques e Shirley Magda Oliveira dos Reis, de Juiz de Fora, Sabinópolis e Belo Horizonte, respectivamente.
Cada uma receberá R$ 10 mil e terá 600 exemplares de sua obra impressos, que serão distribuídos gratuitamente a bibliotecas públicas, instituições culturais, escolas e outros espaços de leitura. Com inscrições gratuitas, o edital buscou valorizar a literatura e a produção científica de mulheres negras mineiras, premiando obras escritas em língua portuguesa, de qualquer gênero – como conto, romance, poesia, crônica, ensaio ou literatura infantil. As obras devem ser publicadas até o fim de 2025.
Para participar, era necessário ser mulher negra, nascida e residente em Minas Gerais, maior de 18 anos, e autora única da obra ou representante de coletânea. A seleção foi conduzida por uma comissão julgadora composta por três profissionais de reconhecida atuação no campo literário, com atenção à diversidade racial e de gênero. Os critérios de avaliação incluíram qualidade literária e científica, originalidade, relevância temática e o potencial de contribuição à visibilidade da literatura e da produção científica negra no Brasil.
Ana Paula dos Santos, de Juiz de Fora, foi selecionada com “Ubuntu se faz com Sankofa: Pretuguês básico para uma luta antirracista”; Samara da Silva Marques, de Sabinópolis, com “Preta Metida: um guia para meninas e mulheres negras”, ambas na categoria Obras Literárias. Já Shirley Magda Oliveira dos Reis, de Belo Horizonte, foi contemplada na categoria Obras Científicas, com “Contar histórias: educar e resistir através das vozes das matriarcas negras”.

A historiadora e professora Samara da Silva Marques conta que o livro “Preta Metida: um guia para meninas e mulheres negras” foi escrito após a divulgação do edital, mas o projeto a acompanhava desde a infância, quando começou a se dedicar à escrita.
“Sempre me inspirei em autoras como Djamila Ribeiro, Tia Má, bell hooks, Maya Angelou, Angela Davis e muitas outras. Mas posso afirmar que, para este livro, minhas maiores inspirações foram Michelle Obama e Malala Yousafzai, que contam suas histórias de forma envolvente. Minha intenção era compartilhar um pouco da minha trajetória e tentar, mesmo que minimamente, ajudar outras meninas e mulheres com experiências parecidas com a minha, fortalecendo e dando voz a mulheres negras em uma sociedade que historicamente tenta silenciá-las.”
Samara da Silva Marques destaca a relevância de editais como este. “Enquanto mulher negra, professora e de origem humilde, do interior de Minas Gerais, sempre batalhei para conquistar meus objetivos, mas nunca imaginei uma oportunidade como essa. Acredito que iniciativas assim, além de incentivarem autoras negras, também reforçam a autoconfiança das mulheres e trazem esperança. É importante não só para nós, mas também para nossas famílias, porque ser contemplada é uma conquista coletiva”, afirma.
Rompimento da lógica
Ao garantir mecanismos de publicação para essas produções, o edital não apenas rompe com a lógica excludente que limitava a circulação de narrativas negras, como também enriquece o patrimônio cultural e científico mineiro e brasileiro, incorporando novas perspectivas, memórias e saberes.
A professora e pesquisadora Ana Paula dos Santos destaca a importância da iniciativa. “A publicação física da minha obra amplia seu alcance por meio dessa ação da Fundação Clóvis Salgado e do Ministério Público de Minas Gerais, um incentivo primordial às produções de autoras negras mineiras.
“Ubuntu se faz com Sankofa: Pretuguês básico para uma luta antirracista” é um livro-projeto, em formato de caderno de textos, com ensaios escritos em linguagem não acadêmica, que apresentam biografias e ideias centrais de intelectuais negros brasileiros envolvidos na luta antirracista. O objetivo é instrumentalizar professores e alunos e subsidiar discussões em sala de aula, contribuindo para a construção de uma educação antirracista.
Escrito em 2023 e fruto do trabalho coletivo de três professoras da rede pública de Juiz de Fora, o livro é guiado por três conceitos: Ubuntu, termo africano que remete à coletividade e humanidade compartilhada; Sankofa, símbolo Adinkra representado por um pássaro que olha para trás, e que evoca a importância de revisitar o passado para compreender o presente; e pretuguês, expressão cunhada por Lélia Gonzalez para representar o português atravessado pelas influências africanas. “A proposta é que o texto seja acessível, sem academicismo, valorizando as heranças africanas”, resume a autora.
Ao definir como público-alvo as mulheres negras, o edital reconhece e promove uma produção rica, pulsante e ainda sub-representada no mercado editorial, nas bibliotecas e no imaginário coletivo. Essa dimensão é ressaltada por Shirley Magda Oliveira dos Reis, autora de “Contar histórias: educar e resistir através das vozes das matriarcas negras”.

A obra resulta da dissertação de mestrado defendida em 2024 e apresentada no Ilê Axé Afonjá Oxeguiri, terreiro de candomblé localizado no bairro Concórdia, em Belo Horizonte.
“Sou contadora de histórias afrocentradas há algum tempo e sempre entendi que isso vai além do entretenimento. Contar histórias para o povo negro é narrar a partir de nossas vozes, de nossos territórios, de histórias muitas vezes silenciadas. Escrevi sobre a voz das mulheres negras que contam histórias nas casas de tradição – os candomblés ketu e angola – e nos reinados e congados do Concórdia.
Selecionei as mais velhas, as matriarcas e rainhas, mulheres que comandam esses espaços e práticas. Também defendo a contação de histórias como um elemento ‘pretagógico’, expressão que define uma pedagogia negra criada e pensada no território, enraizada em uma forma ancestral de ensinar pela oralidade.
Hoje, em 2025, somos a maioria da população, e trazer essas questões é valorizar nossos saberes. As mulheres negras não são apenas do cuidado ou da limpeza – elas produzem conhecimento, têm acesso a um sagrado rico e um pensamento tão elaborado quanto qualquer outro. “É importante, necessário e urgente que existam mais editais como este, para que nosso pensamento seja publicado e chegue a quem deve chegar”, afirma.
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