Gastronomia do afeto é usada como fator de cura nos hospitais; leia entrevista

Quem nunca disse, ao se deparar com uma comida sem graça e sem tempero, que parecia “comida de hospital”?
Se, até alguns anos atrás, a comida servida para pacientes e acompanhantes nos hospitais era algo sem cor e sem gosto, hoje a coisa mudou. A gastronomia do afeto, aquela que conforta e ajuda a curar corpo e alma, tem feito cada vez mais parte do dia a dia dos centros médicos.
Em parceria com o corpo clínico, a cozinha dos hospitais tem incrementado cardápios, inserido ingredientes da cultura local e tornado tudo mais cheiroso e saboroso. Tudo isso, claro, sem se descuidar das restrições e necessidades nutricionais de cada paciente.
E para saber como fazer tudo isso garantindo a qualidade da alimentação, a segurança sanitária e ainda controlando os custos, o Diário do Comércio conversou com a gerente do Serviço de Nutrição e Dietética (SND) da Santa Casa de Belo Horizonte, Vanessa Ferreira.
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Nutricionista com 18 anos de experiência e MBA Executivo em Gestão em Saúde pela Fundação Getulio Vargas (FGV), ela é a gerente e responsável técnica do Serviço de Nutrição e Dietética da Santa Casa BH, supervisionando a produção de mais de 3 milhões de refeições anuais. Essa comida é distribuída em dois hospitais: a Santa Casa BH e o Hospital São Lucas, além de três Ambulatórios Especializados da Santa Casa BH.
É verdade que comida de hospital não é mais sopa de macarrão sem tempero? Qual a importância da chamada culinária afetiva para a recuperação dos pacientes?
Essa história já é antiga. Já passou o tempo onde a comida de hospital era uma comida padrão, entregue para o paciente totalmente sem sal. Hoje em dia, a gente segue um cardápio, conforme as prescrições médicas e dos nutricionistas, mas com sabor. Na Santa Casa temos um chef de cozinha, um gastrólogo, que trabalha com toda a química do condimento apoiado por uma equipe de nutricionistas que revisa o cardápio em cima da nossa pesquisa de satisfação. Então, tem a contribuição do nosso cliente com o corpo técnico da casa para que o cardápio seja bem aceito. Temos a questão do custo, mas antes dele, a gente tem a questão da humanização e da aceitação do paciente, porque a dieta faz parte do tratamento. Hoje, na Santa Casa, nós temos observações nutricionais, onde o especialista pode prescrever alguma característica especial desse paciente. Se ele come ou não algum tipo de carne, se tem preferências alimentares, isso tudo pensando no melhor tratamento para o paciente. Então, a equipe técnica faz a degustação porque ela também almoça aqui. Nós somos os primeiros clientes a reclamar e a questionar antes que a comida vá para o paciente. Na pesquisa de satisfação, o paciente opina e nos orienta sobre o que é melhor a ser feito para ele.
Tudo isso implicou em mudanças nos processos dentro da cozinha e na equipe?
As tecnologias mudaram muito nesse tempo, também como conseguimos avaliar os processos. Temos vários indicadores que contribuem para essa melhoria, como a pesquisa de satisfação, o resto-ingesta, o risco alimentar. Tudo isso nos ajuda a fazer o monitoramento. Na pesquisa o paciente pode responder sobre temperatura, sabor, gosto, cheiro, horário, hidratação. Ela contempla todos os setores, todas as áreas da cozinha e nos traz um direcionamento muito preciso para esse trabalho.
As pessoas se surpreendem com o sabor da comida servida?
Sempre tem algo a melhorar, mas sim, as pessoas se surpreendem e recebemos avaliações muito elogiosas. E é difícil porque não é só sobre a comida. Quando você se alimenta, tudo conta. Tem a questão do ambiente, de estar do lado de outra pessoa também doente, a perda das características organolépticas por uso de medicamentos. E várias outras coisas, como não comer à mesa, material diferente, como um talher descartável.
Então, a gente tenta desviar de tudo isso e fazer de forma muito positiva essa alimentação. Sempre celebramos as datas comemorativas trabalhando com inovação e tentando desmistificar essa cara de hospital, de comida ruim, numa forma de acolhimento.
Sob sua liderança, a instituição recebeu o primeiro título de Cozinha Sustentável do Estado, o selo Green Kitchen. Qual o significado desse selo?
Esse foi um grande reconhecimento. Um dos pontos é que não trabalhamos com tempero industrializado, produzimos o nosso próprio tempero e tem várias regras e normas para conseguir. Então, é um dificultador, mas ele proporciona uma comida muito mais perfumada e saborosa. O fato de trabalhar com as ervas in natura agrega muito valor. Na Santa Casa são 100 leitos por andar e a gente atende o grupo todo, fazendo tanto a comida centralizada quanto a descentralizada, porque a gente também transporta comida para outros locais. Eu tenho alguns dados curiosos aqui de produção diária: são 210 quilos de arroz, 110 quilos de feijão, no mínimo 400 quilos de legumes, meia tonelada de carne, 25 quilos de café, 250 quilos de fruta e 2.500 pães por dia. Sustentar um batalhão de pessoas é muita responsabilidade. Tem hora que eu falo que é a mão de Deus, mesmo, porque é humanamente impossível pensar no quantitativo e nas não conformidades que são mínimas. Em quase 19 anos, eu não escutei falar de comida azeda na Santa Casa. É muito esforço, muita dedicação de uma equipe enxuta, com 135 pessoas apenas.
Ao longo desses anos você foi criando departamentos, colocando isso para os estudantes na pós-graduação, quer dizer, tem uma construção também para criar consciência e estrutura dentro do próprio hospital, certo?
Com certeza! Quando eu entrei aqui, em 2005, não era assim. Tivemos uma construção, de forma, de melhoria dos processos. Também para conquistar os nossos doadores, que são tão importantes para as melhorias. Recebemos recentemente quatro fornos novos que contribuem brilhantemente para que a produção da comida seja feita da melhor forma, trazendo o brilho, porque a comida precisa de bons equipamentos para ser boa. O apoio da diretoria comprando a causa, dando carta-branca dentro das possibilidades, para a compra de bons produtos, de confiar que as coisas sejam conduzidas da melhor forma, de investir. Em tantos hospitais, a cozinha não é um local que tenha tanto investimento. No ano passado reformamos a cozinha e já estamos estudando a construção de uma nova. Então, depende de todo mundo fazer o seu papel de forma adequada para que realmente a gente chegue no propósito de melhorar a vida das pessoas, entregar uma saúde de ponta para todos os brasileiros.
Um ponto crítico dentro de qualquer indústria é a questão dos custos. Em um hospital filantrópico, 100% SUS, essa questão do controle e da prestação de contas é ainda mais severa. Como mostrar que a cozinha é um investimento e não um gasto?
É preciso colocar tudo na ponta da caneta. Colocar a equipe para fiscalizar, orientar. Cada centavo é importante porque como o volume é muito grande, dá muita diferença. Observamos a safra, mudamos de fornecedor, vamos fazendo trocas inteligentes. Todo mês fazemos a avaliação do nosso orçamento. E a gente tem que cuidar do dinheiro, que é da população.
Estamos no Papo de Gastronomia, então eu posso dizer que os hospitais formam um campo de trabalho pouco conhecido pelos profissionais da gastronomia?
Com certeza!. A gastronomia é a química da alimentação. Então, para qualquer cardápio você precisa dessa beleza do saber combinar. Um tempo atrás, lançamos um prato único de gastronomia e fizemos a noite de massas para pacientes que poderiam receber. Então, é possível fazer essa alquimia da comida dentro do hospital. Os molhos com as carnes, o arroz que você pode colorir, por exemplo. Podemos quebrar esse paradigma que o hospital é um local de comida sem gosto. Uma das parcerias que eu busco muito nesse momento é com uma faculdade para abrir esse campo da gastronomia dentro da área hospitalar. Nós temos um projeto para o próximo ano de trabalhar com um escritório de funcional, para a gente fazer uns blends, algumas alquimias com os condimentos para enriquecer a comida, trazendo não só a sofisticação, mas também enriquecer de vitaminas, sais minerais. Estamos pensando também em trabalhar com a parte na linha de chás, com o próprio nutricionista e o médico prescrevendo.
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