Falar de gastronomia ancestral é falar de história e pertencimento

A gastronomia ancestral refere-se à comida e aos hábitos alimentares transmitidos de geração a geração, que refletem a cultura e a história de um povo. É uma forma de cozinha que tem cada vez mais atraído a atenção dos profissionais da gastronomia e do público, ao valorizar a utilização de ingredientes locais, métodos de preparação tradicionais e o conhecimento ancestral sobre os alimentos.
A gastronomia mineira, premiada internacionalmente e reconhecida como uma culinária única e original, tem na ancestralidade o seu grande valor. Da união de povos – indígenas, afrodescendentes e europeus – que aqui encontram uma diversidade de ingredientes enorme provenientes de três grandes biomas – Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga – e suas interseções, surgiu uma comida de muitas cores e aromas. “Sustanciosa”, ela sempre foi capaz de alimentar os trabalhadores braçais que tiraram da terra o ouro nos primeiros séculos, os tropeiros que traçaram os contornos de um território maior que a França e até hoje todos os mineiros nascidos e os por adoção.
Nesta edição de Gastronomia ouvimos profissionais diversos – da cozinha aos arquivos históricos, passando pelos especialistas em empreendedorismo – para falar da gastronomia ancestral como valor de negócio.
Falar de gastronomia ancestral é falar de história e pertencimento, mas como fazer para não cair no modismo, na “conversa de rede social” e garantir que os saberes e sabores sejam respeitados e valorizados?
“Acho que o mais importante é chegar a um conhecimento profundo sobre a sua cultura, as bases reais da sua cozinha. Existem muitas formas: você pode ler livros, fazer cursos, perguntar para a sua avó. Você pode verificar como era feito antes e ir a restaurantes onde ainda se faz como se fazia. Você reconhecer a sua ignorância e melhorar a sua própria cozinha, afinal de contas, a culinária é parte da nossa identidade, é um valor. Então, se você não conhece profundamente os seus próprios valores, como vai poder transmiti-los a outras pessoas? O que os outros países querem saber sobre nós é onde pertencemos, porque fazemos do jeito que fazemos? Por que Minas tem um queijo tão maravilhoso, de onde vem a cultura das quitandeiras? Isso é importante para a gastronomia mundial e nós temos esse valor. Precisamos conhecê-lo bem para transmitir aos outros.” (Pamela Tello, chef e pesquisadora peruana)”
“A ancestralidade é um conceito que a gente acha que está no passado. Hoje em dia, entendemos a ancestralidade como uma ferramenta do presente que pode ser muito bem utilizada de forma econômica de fato e não só histórica e religiosa. É uma ferramenta que tem que ser utilizada pelos territórios e pelos empreendedores, porque a ancestralidade é uma coisa que todo mudo tem. Existe uma certa racialização do termo que não faz sentido. Todas as culturas têm ancestralidade e os territórios também. Ela está ligada ao CPF e ao CEP. Às vezes é um resgate de coisas que foram, realmente, esquecidas e que podem ser trazidas para o cotidiano, como receitas tradicionais, saberes, modos de fazer. A patrimonialização é muito importante porque ela pode fazer com que a ancestralidade seja materializada economicamente. Quando o empreendedor vê que ele pode faturar mais, vender mais a partir de uma narrativa ancestral respeitosa, sem folclorização, sem máscaras, de forma genuína, ele percebe a força que isso tem.
Passados séculos, ainda temos que, infelizmente, falar da dor da colonização e da escravidão, mas temos muita riqueza para falar da influência desses povos – indígenas, africanos e europeus – e a sua influência nesse caldeirão da cultura alimentar, na história, na economia, na geografia e em todos os aspectos, inclusive políticos do nosso País.

Essas referências estão na mesa dos mineiros, estão nos mercados, feiras, quitandas, bodegas, enfim, por todos os lados. A doçaria mineira brinca com essas três culturas e interferências. As comidas de caldeirão, a utilização das panelas de ferro, de enxovais de madeira, tudo isso é influência desses povos, e estão na mesa e nos empreendimentos mineiros. Agora é hora de pegar tudo isso e trabalhar a potência dos empreendedores.” (Patrícia Durães, pesquisadora em Cultura Alimentares)
Qual a importância de preparar os profissionais da gastronomia para gerir o negócio baseado na ancestralidade? Quais as maiores dificuldades e os maiores valores nesse segmento?
“Hoje, quando os consumidores buscam um produto na sua rede social ou em qualquer outro lugar, eles querem saber a veracidade daquela informação. Então, quando a gente fala de ancestralidade, de história, mais do que ter um produto turístico gastronômico muito legal, eles querem saber se aquilo de fato é verdade.
Então, a partir do momento em que vão formatar os produtos, é fundamental que os empreendedores conheçam a identidade desses produtos, que eles façam uma pesquisa histórica e a partir daí, entendendo a jornada do seu cliente, trabalhe a formatação do produto turístico. Vamos pensar aqui em algum prato que se remeta a festivais como Folias de Reis, por exemplo. O que esses reis gostavam? Dá para desenvolver um prato com uma história gastronômica. Além da história, esse consumidor vai experimentar de fato o que aqueles reis consumiam? A questão da ancestralidade para transformar isso em produto turístico é fundamental que o consumidor perceba essa veracidade nas informações e consiga trabalhar os sentidos, o paladar, o tato, o cheiro, o olfato. Então isso faz toda a diferença para o turismo de experiência.” (Renato Lana, analista do Sebrae Minas)

“O cozinheiro peruano, basicamente, é muito empírico, existem muitas pessoas com os conhecimentos ancestrais herdados das famílias, porém, hoje em dia ele está procurando se tecnificar, ter um valor de mercado. E, para isso, instituições como o Cenfotur (Centro de Formación en Turismo) são muito importantes para que a pessoa tenha a alegria de não apenas cozinhar maravilhosamente bem, mas de ser formada. Não é só aprender a cozinhar e as técnicas. É também entender um sistema, saber fazer uma ficha técnica, poder colocar um preço corretamente. A cozinha peruana tem um valor muito grande e modificou muito a economia do País. Hoje existem restaurantes peruanos espalhados pelas cidades mais importantes do mundo, há 20 anos não era o caso. Hoje, trabalhar e se dedicar à culinária peruana é uma grande chance de sucesso econômico também. Isso é uma coisa muito maravilhosa!” (Pamela Tello, chef e pesquisadora peruana)
Qual a marca ancestral da gastronomia mineira? O que até se ensina ou se copia, mas é em Minas que está a sua originalidade?
“Tem uma coisa que só se faz aqui: o tempero verde usando o quitoco e favaquinha da roça. O quitoco só tem aqui. O tempero verde marca os nossos feijões. Outra coisa são as quitandas mineiras. Ninguém sabe fazer quitandas como os mineiros. Os doces até fazem, mas os doces mineiros, apesar de usar açúcar, são diferentes, por exemplo, o nosso doce de leite é único. Ele é branco e cremoso. São apenas 100 gramas de açúcar por litro de leite da roça. Tem certas comidinhas que só em Minas você vai achar. (Elizinha Nunes, chef e pesquisadora mineira)

É muito importante a mistura do quiabo, do feijão, da farinha, do leite, da carne de lata e o refinamento que veio da Europa. Essa influência afro-indígena-portuguesa dá um refinamento para o mineiro. Além de cozinhar bem, o mineiro sabe receber como ninguém. Além de cozinhar bem, ele sabe apresentar um prato e por uma mesa. O mineiro é exímio em receber bem porque junta tudo isso.” (Pamela Tello, chef e pesquisadora peruana)
“Mineiro é o rei da hospitalidade. A gente não sai da casa de ninguém sem um pacotinho, um docinho embrulhado num guardanapo. Então, eu acho que é um estado que acolhe de forma muito especial, muito diferente, não é forçado.
Receber bem, ter uma mesa farta, essa comida muito corajosa e muito respeitada, que é uma comida que tem o seu próprio tempo. A comida mineira precisa de um cuidado, de um carinho, de um tempo. São os longos preparos. Tem a busca pelos ingredientes. É o frango de não sei onde. É o fubá branco de outro território. É a pimenta da horta de um outro lugar. Então, se tem uma coisa que o mineiro sabe fazer é receber bem e com mesa farta de comida especial, muito bem feita e com a sua própria comida. Mineiro tem um orgulho do seu patrimônio imaterial que é bonito de ver.” (Patrícia Durães, pesquisadora em Cultura Alimentares)
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