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Entre receitas e memórias, imigrantes latino-americanos reconstroem o futuro em BH

Empreendedores de países como Venezuela e Cuba encontraram na Capital uma oportunidade para recomeçar a partir da gastronomia
Entre receitas e memórias, imigrantes latino-americanos reconstroem o futuro em BH
Mesmo com crescimento do negócio, "Paladar Cubano" preserva elementos tradicionais do país, preparados pelo chefe Julio Diaz Escalona | Foto: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Muito mais do que uma fonte de sustento, a gastronomia se revela como uma importante ferramenta afetiva de expressão cultural e reconexão com a terra natal. Em Belo Horizonte, imigrantes latino-americanos encontraram na cozinha uma oportunidade de crescimento profissional, reconstruindo a própria identidade em um novo território ao mesmo tempo em que lutam para preservar memórias do país de origem.

A culinária na capital mineira, conhecida pelo vasto número de bares e restaurantes, é resultado de um verdadeiro mosaico cultural, formado por povos de diferentes países. Desde portugueses, italianos e africanos, até libaneses e asiáticos. O diretor de hospitalidade e gastronomia do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Edson Puiati, destaca que cada fluxo migratório ao longo de décadas foi responsável por moldar a cozinha mineira a partir de ingredientes, técnicas e hábitos à mesa.

Imigrantes italianos, segundo ele, são um exemplo quando se trata da popularização de massas frescas e do uso generoso de queijos e embutidos, enquanto os libaneses introduziram os temperos marcantes e preparos como esfirras e quibes. Já a culinária japonesa venceu a barreira do sabor adaptando peixe e arroz a paladares locais.

“Essa convivência, somada ao diálogo com os ingredientes mineiros, como o queijo minas artesanal e o café de montanha, gerou um perfil único de cozinha híbrida, que hoje define muito do que entendemos como o sabor de BH”, pontua.

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Para recém-chegados à cidade, o empreendedorismo na gastronomia pode ser explicado pelo custo-benefício, somado ainda à bagagem de conhecimento no preparo de receitas em detrimento das exigências para inserção em outras atividades do mercado de trabalho. Para Puiati, a cozinha pode ser considerada um “patrimônio cultural portátil”, permitindo a reprodução em espaços relativamente pequenos, com investimento inicial mais baixo do que outras indústrias.

Outro fator relevante é o poder de conexão da comida, que atrai curiosidade e cria pontes de diálogo com o público local. “Para muitos imigrantes, abrir uma pequena cantina, food truck ou confeitaria é a maneira mais rápida de gerar renda, expor sua identidade cultural e construir redes de relacionamento”, complementa o diretor.

Comandado por venezuelanos, Dorian Cacao marca o recomeço de uma família após desafios na terra natal

Em homenagem ao filho Dorian, nasceu a Dorian Cacao Venezuela, o primeiro restaurante típico do país latino-americano na capital mineira | Foto: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Impactados pelo contexto econômico na Venezuela, incapaz de cobrir necessidades básicas, Yenither Olivar e a família encontraram na gastronomia uma oportunidade para recomeçar a vida em outro país. Com a ajuda de um grupo de capoeira, o esposo dela, Reinaldo Nieves, conseguiu chegar ao Brasil e só três anos depois se reencontraram.

Nesse período, o casal de imigrantes enxergou a oportunidade de iniciar um negócio com gastronomia venezuelana em Belo Horizonte. “Ainda na Venezuela, comecei a fazer cursos de gastronomia, confeitaria e empreendedorismo para empreender quando chegasse ao Brasil”, detalha Yenither Olivar.

Em homenagem ao filho Dorian, nasceu a Dorian Cacao Venezuela, o primeiro restaurante típico do país latino-americano na capital mineira. Inicialmente focado na venda de brownies, o negócio se expandiu, conquistou uma unidade física e ganhou notoriedade com a ajuda de influenciadores nas plataformas digitais.

Tradicionais empanadas são destaque no cardápio do restaurante venezuelano | Foto: Divulgação/Dorian Cacao Venezuela

Dentre os destaques culinários, o restaurante conta com as tradicionais arepas, tostones caribenhos, empanadas e tequeños, além de bebidas como o suco de rapadura com limão, muito popular no país. Com o sucesso do cardápio, o espaço comandado por imigrantes chegou a ser nomeado no prêmio Cumbucca como melhor restaurante internacional com a bebida venezuelana “chica”, além do terceiro lugar em sobremesa no Festival do Arroz em Belo Horizonte.

“Mesmo com alguns desafios de ingredientes, tentamos preservar o máximo possível as tradições da Venezuela. Quando não conseguimos, adaptamos o produto que conseguirmos chegar o mais próximo possível do paladar local”, ressalta a empreendedora.

Agora, o casal, além de compartilhar sabores da Venezuela com o Brasil, também busca expandir o espaço para levar parte da cultura do país para Minas Gerais. Além da comida, o espaço deve ganhar atividades culturais, como aulas de salsa e percussão.

“Queremos que o brasileiro conheça a culinária e a cultura venezuelana e acreditamos que vir para Belo Horizonte foi uma excelente escolha. É uma cidade com muita oportunidade de crescimento, especialmente para os nossos objetivos de conquista”, conclui Yenither Olivar.

Do amor ao sabor: Paladar do Cubano conquista BH

Em destaque no cardápio, “Bodeguita” inclui o tradicional congrí, além da costelinha de porco, mandioca e abacate, preparados com temperos e molhos especiais do país de origem | Foto: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Uma história de amor que começou em Cuba motivou o chefe de cozinha Julio Diaz Escalona a deixar a terra natal e mudar para o Brasil. Há 18 anos, ele passou por desafios na capital mineira, marcados pela escassez de oportunidades e pela burocracia para iniciar um negócio.

Nesse período, trabalhou em estabelecimentos como pizzarias, churrascarias, além de restaurantes de culinária chinesa, indiana e mineira. Nesses locais, foi responsável por montar cardápios, administrar cozinhas e treinar equipes.

Sem emprego, Escalona recorreu a plataformas de delivery para iniciar o próprio negócio, que se tornou um sucesso na cidade com filas de pedidos para todas as regiões. Além do sabor, o chefe ficou famoso pela habilidade com a faca, pela higiene e por trabalhar sempre com ingredientes de qualidade, marcando assim o início do “Paladar do Cubano”.

O termo é frequentemente utilizado em Cuba quando se referem a restaurantes criados por trabalhadores autônomos, geralmente nas próprias casas e com número limitado de funcionários e mesas. Curiosamente, o nome tem forte ligação com terras brasileiras, já que era visto na novela Vale Tudo – que se tornou um fenômeno no país latino no início dos anos de 1990.

“A culinária cubana é muito diferenciada de todas as comidas, com temperos naturais e formas de fazer diferentes de qualquer lugar do Brasil. Quero crescer cada dia mais e espero que as pessoas se sintam felizes ao experimentar novos sabores”, destaca Julio Diaz Escalona.

No cardápio, destacam-se pratos tipicamente cubanos como o Bodeguita, que inclui o tradicional congrí, além da costelinha de porco, mandioca e abacate, preparados com temperos e molhos especiais do país de origem. Para beber, a casa conta com drinks cubanos como Daiquiri, Cuba Libre, Canchánchara e Cacao Colado, apostando em um preparo e sabor diferenciados.

Espaço é decorado com recados, fotografias e elementos que resgatam memórias de Cuba | Foto: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Com o sucesso do negócio, o espaço foi ampliado e hoje é completamente decorado com mensagens, objetos e uma grande bandeira de Cuba que se estende por toda a parede da sala principal. Apesar do crescimento, o modo de preparo segue a tradição cubana desde a fundação com todos os pratos, da entrada aos drinks, preparados pelo chefe.

Apesar do amor ter direcionado o destino, Escalona acredita que está na cidade certa e o maior desejo no momento é seguir cozinhando e apresentando Cuba para cada vez mais brasileiros. “Belo Horizonte tem o seu diferencial, e logo me senti em casa. O mineiro se parece muito com o cubano – um povo acolhedor e comunicativo”, finaliza.

Mercado gastroturístico em expansão transforma BH em ‘terreno fértil’ para novos empreendimentos

Mercado Novo é um dos principais redutos gastroturísticos de Belo Horizonte | Foto: Leonardo Morais/Diário do Comércio

A tradição acolhedora aliada a um mercado potencial tornaram Belo Horizonte um dos principais redutos gastroturísticos do Brasil nos últimos anos. De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), a gastronomia belo-horizontina movimenta cerca de R$ 4,5 bilhões por ano.

A cidade também é detentora do maior número de bares e restaurantes por habitante do Brasil. Ao todo, são mais de 18,6 mil negócios, concentrados em cerca de dez polos gastronômicos.

Para Edson Puiati, a presença de polos universitários e eventos permanentes relacionados à gastronomia como rodas de conversa, festivais de rua e feiras de produtores, estimula novos empreendimentos. O município também detém o título de cidade criativa da gastronomia pela Unesco, além de insumos premiados como o queijo minas artesanal, que hoje é considerado patrimônio da humanidade.

“Além disso, instituições de fomento como o Senac e Sebrae em Minas e o Serviço Público Municipal, oferecem cursos de formação técnica, consultorias de negócios e incubadoras de restaurantes. Esse ecossistema transforma Belo Horizonte em um terreno fértil para quem chega com um saber cultural, mas precisa de apoio para empreender”, ressalta.

Avanços ainda dependem da quebra de estereótipos e da facilidade de acesso ao crédito

Apesar das oportunidades, desafios importantes ainda persistem, especialmente quando se trata de imigrantes recém-chegados a Belo Horizonte. “Muitos consumidores demonstram receio ou estereótipos negativos acerca de cozinhas estrangeiras, especialmente pratos africanos, considerando-os sem temperos naturais, o que reduz a demanda inicial”, avalia Puiati.

Outro ponto observado tem relação com a introdução de conceitos como culinária vegetariana, vegana ou preparos menos centrados em proteína animal. A prática, segundo o diretor de hospitalidade e gastronomia do Senac, pode enfrentar descrença inicial em um mercado ainda focado em carne e proteína animal.

Por fim, ele ainda destaca o peso de contextos e condições econômicas na jornada desses profissionais, incluindo dificuldades de acesso a crédito formal, e custos para adaptação à legislação brasileira.

“Mesmo com os desafios, em geral, Belo Horizonte avançou muito na valorização da diversidade gastronômica nos últimos anos. Projetos como circuitos de comida de rua e festivais multiculturais tornaram-se eventos consolidados na cena mineira”, conclui Puiati.

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