Independência tecnológica virá através da parceria entre rede pública e privada

A professora da Faculdade de Farmácia da UFMG, Ana Paula Fernandes, uma das coordenadoras do CT-Vacinas, centro de pesquisas em biotecnologia, resultado de uma importante parceria estabelecida entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Instituto René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Minas) e o Parque Tecnológico de Belo Horizonte (BHTec), falou com exclusividade para a coluna INOVAÇÃO, segue a entrevista completa.
Qual é a importância da detecção precoce por meio de testes diagnósticos na prevenção e tratamento eficaz de doenças? Como isso pode influenciar os desfechos clínicos e a qualidade de vida dos pacientes?
Nos casos de doenças infecciosas, os testes diagnósticos têm melhorado significativamente o controle da transmissão e a prestação de cuidados aos pacientes. Isso é crucial para evitar que condições inicialmente simples evoluam para quadros mais graves. Por exemplo, no contexto de doenças respiratórias causadas por vírus, como a influenza, medidas de isolamento são essenciais para interromper a propagação do vírus. Quando o diagnóstico é rápido e os pacientes seguem as orientações de isolamento e cuidados, isso desempenha um papel fundamental na contenção da doença. Portanto, a agilidade e a simplicidade dos testes diagnósticos são essenciais para promover essa eficácia no controle e prevenção de doenças infecciosas.
Durante a pandemia, os testes rápidos se tornaram uma diferença significativa. Com o avanço desses testes mais sensíveis, o diagnóstico individual se tornou acessível não apenas em ambientes hospitalares, mas também em farmácias. Além disso, houve uma evolução na sensibilidade e especificidade desses testes, o que antes era uma preocupação. Hoje, o acesso a esses testes em farmácias, clínicas e postos de saúde é uma realidade.
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Um exemplo disso é nas infecções causadas por vírus hepatotrópicos. Essas doenças muitas vezes progridem lentamente e de forma assintomática, podendo resultar em quadros graves após longos períodos. O diagnóstico precoce e o tratamento imediato podem prevenir a transmissão e a progressão para formas mais graves da doença.
Testes que investigam aspectos bioquímicos e hematológicos também desempenham um papel crucial, especialmente no controle e diagnóstico precoce do diabetes e outras condições de saúde. Essa abordagem possibilita um alerta precoce sobre níveis elevados de glicose, permitindo intervenções oportunas para controlar a condição e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
Como as tecnologias emergentes, como a inteligência artificial e a biotecnologia, estão sendo aplicadas no desenvolvimento de novos testes diagnósticos? Quais são os benefícios e desafios associados a essas inovações?
A biotecnologia, através do avanço no conhecimento dos genomas, tanto de patógenos quanto humanos, proporciona alvos cada vez mais sensíveis e específicos para diagnósticos. Ferramentas modernas, como a produção de moléculas recombinantes e testes moleculares, viabilizam o acesso a esses alvos, aprimorando plataformas de diagnóstico molecular, sorológico e de detecção de antígenos.
Além disso, a biotecnologia frequentemente surpreende com avanços inesperados. Por exemplo, apesar de se acreditar que o genoma da Escherichia coli já estivesse completamente compreendido, descobertas recentes revelaram novas funções para seus genes, incluindo o sistema CRISPR e as enzimas CAS. Essas descobertas não só contribuem para diagnósticos mais precisos e específicos, adaptáveis a testes rápidos, mas também abrem caminho para a edição genômica, possibilitando o desenvolvimento de vacinas mais seguras e eficazes, bem como a terapia genética para doenças como as hemoglobinopatias e o câncer.
A inteligência artificial também desempenha um papel crucial na descoberta de novos marcadores diagnósticos. Ao analisar grandes conjuntos de dados, a inteligência artificial pode identificar associações e padrões anteriormente não detectados, melhorando a precisão e a rapidez dos diagnósticos. Essa capacidade de processar grandes volumes de dados simultaneamente possibilita a identificação de padrões complexos, como na predição de desfechos clínicos, como a evolução para sepse em pacientes hospitalizados.
Qual é o papel das vacinas na prevenção de doenças? Como as vacinas têm contribuído para o controle e erradicação de doenças infecciosas ao longo da história?
No contexto das vacinas e sua importância na prevenção de doenças, enfrentamos um momento complexo e desafiador na sociedade. Ao longo de várias gerações, as vacinas têm sido fundamentais para salvar inúmeras vidas, como evidenciado pelo impacto positivo relatado pela Organização Mundial da Saúde ao analisar a eficácia de vacinas rotineiramente administradas em crianças, como a vacina antipneumocócica e contra a influenza. No entanto, muitas pessoas, especialmente as mais jovens, podem não compreender plenamente essa relevância devido à ausência de experiências diretas com doenças como difteria e varíola, que foram amplamente controladas pelo uso de vacinas.
Além disso, a disseminação de desinformação ou informações incorretas, facilitada pelas redes sociais e outras mídias eletrônicas, contribui para a falta de compreensão sobre os benefícios das vacinas. Ouvir falar sobre possíveis reações adversas às vacinas sem o devido embasamento estatístico pode gerar preocupações infundadas. É crucial que as pessoas entendam que as vacinas passam por rigorosos testes científicos e são submetidas a uma extensa análise antes de serem aprovadas para uso público. Agências regulatórias, autoridades de saúde e a comunidade científica desempenham papéis essenciais nesse processo de avaliação.
A falta de educação, pensamento crítico e acesso a informações precisas também contribui para a hesitação em relação às vacinas. É importante destacar exemplos históricos, como o impacto devastador da difteria em gerações passadas, para ressaltar a importância da imunização. Muitas mães hoje podem não compreender plenamente as consequências dessas doenças no passado, o que pode afetar sua percepção sobre a necessidade de vacinar seus filhos. Portanto, é fundamental promover uma educação mais abrangente e informada sobre o papel crucial das vacinas na proteção da saúde pública.
Quais são os principais avanços recentes no desenvolvimento de vacinas? Como essas inovações estão ajudando a enfrentar desafios específicos e recentes, como a pandemia de Covid-19 e outras doenças como dengue, febre amarela por exemplo?
No que diz respeito às vacinas contra a dengue, já temos três opções disponíveis no mercado. A primeira delas enfrentou alguns problemas, porém, as duas subsequentes, tanto a desenvolvida pela Takeda quanto à pelo Instituto Butantan, representam uma grande esperança para o controle da doença. Estima-se que ainda serão necessários de 8 a 10 anos para que possamos observar o impacto da vacinação na redução da incidência da dengue. No entanto, mesmo com esse prazo, a vacinação se apresenta como a melhor alternativa dentre todas as medidas de controle disponíveis. Ao longo de várias décadas, temos enfrentado o desafio da dengue, com surtos e epidemias recorrentes, e a adoção das vacinas surge como a perspectiva mais promissora diante das dificuldades enfrentadas, incluindo a adesão da população e as medidas de controle do vetor.
Como as estratégias de imunização e vacinação em massa podem impactar a saúde pública e reduzir a incidência de doenças infecciosas? Quais são os principais obstáculos para a implementação eficaz dessas estratégias?
A vacinação em larga escala enfrenta diversos obstáculos, incluindo questões logísticas, de capacitação e distribuição das vacinas. No entanto, o Brasil possui um histórico positivo e reconhecido internacionalmente no uso de vacinação em massa para o controle de doenças, graças ao seu Programa Nacional de Imunização. Talvez, devido a essa experiência prévia, o país esteja mais preparado para lidar com os desafios logísticos que surgem nesse processo. Uma das principais barreiras atualmente é conscientizar a população e os líderes políticos sobre a importância das vacinas no controle das doenças. Espera-se que, com os avanços recentes na área, surjam alternativas de vacinas para o controle de grandes flagelos, como tuberculose e AIDS.
Em suas pesquisas no CT-Vacinas, quais são os projetos mais promissores em termos de desenvolvimento de novos testes diagnósticos e vacinas? Como essas inovações podem beneficiar a população brasileira e global?
O CT-Vacinas tem se dedicado a explorar diversas plataformas para o desenvolvimento de vacinas e a buscar novos adjuvantes. Possuir essa base e essas opções como princípio é crucial, especialmente porque, como é sabido, apenas parte das vacinas utilizadas na população brasileira têm sua matéria-prima completamente produzida no País, e muitas delas não foram desenvolvidas aqui. Diante disso, é fundamental reconhecer a importância de desenvolver vacinas para problemas de saúde pública específicos do Brasil, como a malária causada pelo Plasmodium vivax, que é uma preocupação significativa em nosso País, apesar de também ocorrer em menor escala na Ásia. Se não assumirmos a responsabilidade de enfrentar esse desafio, quem mais o fará? Por isso, entre os projetos de vacinas em desenvolvimento pela equipe do CT-Vacinas, destacam-se aquelas voltadas para a malária vivax, leishmaniose, doença de Chagas e outros problemas de saúde pública locais.
Além disso, estamos trabalhando no desenvolvimento de testes diagnósticos inovadores para enfrentar questões de saúde que também são prevalentes em nosso País. Um exemplo é a hepatite delta, que apresenta uma das maiores incidências na região amazônica em comparação com o restante do mundo. Diagnosticar pacientes com essa doença é uma tarefa desafiadora, portanto, é altamente relevante adotar plataformas simplificadas, como testes point-of-care, e explorar diferentes alternativas de diagnóstico para essa condição aqui no Brasil.
Como a colaboração entre universidades/instituições de pesquisa, governos e indústrias farmacêuticas pode impulsionar o desenvolvimento e a implementação de inovações em saúde?
A parceria entre instituições públicas, como universidades e institutos de pesquisa, governos e instituições privadas, como empresas, é fundamental para alcançar o desenvolvimento e a independência tecnológica no País. Ainda há uma grande disparidade na adoção de novas tecnologias e na inovação tecnológica, que precisamos enfrentar, especialmente por questões de segurança nacional, como evidenciado durante a pandemia.
Por exemplo, a produção nacional de vacinas é uma alternativa fantástica, e instituições como Biomanguinhos e o Butantan desempenham papéis significativos nesse sentido. No entanto, enfrentamos dificuldades em absorver tecnologias desenvolvidas por essas instituições, em grande parte devido à alta demanda pela produção em larga escala de vacinas já integradas ao nosso Programa Nacional de Imunização (PNI). Isso dificulta a interrupção da produção ou o investimento em novas vacinas e em lotes menores para demonstrar eficácia, segurança e obter aprovação regulatória.
Portanto, carecemos de infraestrutura para escalonamento de produção e geração de dados necessários para a aprovação de novos produtos, não apenas no caso de vacinas, mas também de testes diagnósticos, fármacos e medicamentos. Essa lacuna compromete nosso desenvolvimento tecnológico e nos mantém dependentes de tecnologias estrangeiras, quando poderíamos estar diversificando nossa economia, recebendo royalties e exportando tecnologias.
Apesar de possuirmos ciência e competência para desenvolver novos produtos até a fase de pesquisa laboratorial, é crucial enfrentar essa lacuna e criar condições adequadas para testar novos produtos com infraestruturas apropriadas.
Como a educação e a conscientização pública podem desempenhar um papel fundamental na promoção da aceitação e adesão às vacinas e testes diagnósticos? Quais estratégias são mais eficazes para comunicar informações científicas complexas ao público em geral?
Possivelmente, como sociedade e autoridades de saúde pública, não estamos sendo suficientemente competentes e educativos na transmissão do conhecimento necessário para evitar o ressurgimento de doenças como o sarampo, que podem afetar nossas populações mais jovens de forma significativa devido à queda nas taxas de vacinação. Talvez a informação correta, científica e honesta não esteja sendo devidamente disseminada entre as populações mais jovens.
Existem legislações, recomendações e diretrizes para o desenvolvimento e aprovação de vacinas que são muito bem elaboradas e criteriosas, seguidas em todo o mundo. Isso garante que, quando uma vacina é aprovada para uso em humanos, todos os requisitos de segurança e eficácia tenham sido comprovados.
Quais os principais desafios enfrentados pela C,T&I no Brasil? Fale sobre a relação entre investimentos em C,T&I de forma perene e soberania nacional.
O Brasil enfrenta um desafio significativo em relação ao financiamento e investimento em pesquisa. Embora haja momentos de melhor financiamento, muitas vezes ele não é suficiente em comparação com o investimento realizado por países desenvolvidos nessa área. Além disso, ocorrem períodos de descontinuidade na alocação de recursos, o que é extremamente prejudicial. Essa descontinuidade implica, por exemplo, na aquisição de equipamentos de última geração para pesquisa, seguida pela falta de recursos para manutenção, levando à deterioração e obsolescência desses equipamentos. Como resultado, torna-se difícil acompanhar o avanço da área de pesquisa.
Outro desafio é a retenção de pessoal qualificado. Muitos doutores formados com investimento considerável deixam o país para trabalhar em pesquisa em outros lugares ou abandonam a carreira, representando um desperdício de talento. Anteriormente, muitos desses doutores ingressavam como professores nas universidades, mas essa realidade mudou.
Além disso, o Brasil enfrenta um déficit significativo na balança comercial de produtos para saúde pública e diagnóstico. A maior parte desses produtos é importada, incluindo vacinas e medicamentos, o que coloca o país em desvantagem em relação ao desenvolvimento tecnológico em biotecnologia que está ocorrendo em outros lugares do mundo. Investimentos urgentes são necessários para identificar e superar esses gargalos, a fim de aproveitar as oportunidades proporcionadas pelos avanços significativos na área de saúde pública em escala global. (Entrevista enviada pela colunista Janayna Bhering)
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