‘Experimente! Abra o coração’: as lições de Ivo Faria, um mestre da cozinha mineira
                            Premiado, reconhecido internacionalmente e símbolo da gastronomia mineira, o chef Ivo Faria construiu uma trajetória marcada pela disciplina e pela busca constante pela excelência. De aluno do curso técnico do Senac, aos 14 anos, a fundador do icônico Vecchio Sogno, em Belo Horizonte, Ivo foi um dos responsáveis por transformar o cenário gastronômico da Capital nos anos 1990 e projetar Minas Gerais no mapa da alta cozinha nacional. À frente do Instituto Ivo Faria e de novos projetos como o La Palma, ele segue como referência em festivais e eventos, ensinando e inspirando novas gerações de chefs.
Entre memórias, desafios e descobertas, ele relembra como a cozinha, que no início lhe causava resistência, acabou se tornando sua grande paixão e ponto de virada em sua vida profissional.
Você começou na gastronomia muito cedo, aos 14 anos, no curso técnico do Senac. Como surgiu o interesse pela cozinha?
A cozinha nunca fez parte da minha vida. Quando minha mãe pedia para lavar uma panela, era uma briga terrível. Eu não gostava, chegava a chorar. Detestava a cozinha. Quando entrei no Senac, minha intenção era ser garçom. Eu ia completar 15 anos quando entrei na cozinha e quis desistir, mas minha mãe me convenceu a ficar. Isso foi positivo. Aquilo que eu não tinha, muitas vezes, em casa – uma boa alimentação -, passei a ter no Senac, e isso me cativou. A cozinha foi o meu ponto de partida.
Ainda com 16 anos, fui para o Grogotó, hotel-escola do Senac. Na época, tínhamos dois professores muito bacanas: o Esmeraldo e o Lucien Iltis. Lucien era um francês de alto nível, tinha sido chef do Copacabana Palace e do Juscelino Kubitschek, e veio inaugurar em Belo Horizonte a primeira escola de hotelaria do Brasil, em 1988.
Essa escola surgiu em um momento difícil, quando ninguém se interessava por gastronomia e menos ainda por ser garçom. Geralmente, quem procurava eram pessoas carentes. O Senac pagava uma ajuda de custo para que os alunos fizessem o curso. Belo Horizonte tinha pouquíssimos restaurantes e bares; dava para contar nos dedos. Tudo se concentrava no Centro da cidade.
O Senac fez um trabalho maravilhoso e eu acabei virando instrutor. Na verdade, fui contratado como auxiliar de cozinha, mas estudava muito, queria ser como o Lucien e o Esmeraldo. Logo comecei a dar aula para os alunos, porque não havia instrutor disponível.
No Grogotó, fiquei um ano como aluno e depois dois anos como profissional. Mas ninguém se interessava pelo curso de cozinha, então fomos buscar alunos dentro da Febem. Trouxemos 28, todos mais velhos do que eu – um garoto de 17 anos que precisava impor respeito. Pela falta de instrutores, eu trabalhava 16 horas por dia, mas não achava ruim. Dedicava-me para crescer e mostrar meu trabalho.
Foram dois anos como instrutor, contratado como auxiliar de cozinha e depois como cozinheiro, mas nunca como instrutor formal. Enquanto isso, o Senac levou outros instrutores, mas eram pessoas sem conhecimento técnico que não permaneciam. Foi quando chegou o francês Antoine Romeo, em quem me espelhei. Ele foi meu mentor, mesmo após eu mudar de emprego várias vezes.
Sempre digo aos jovens da profissão: “se você tem a oportunidade de estar ao lado de alguém bom, aproveite.” Muitas vezes, as pessoas deixam o momento passar.
Aos 19 anos, fui indicado para ser chef do restaurante Café São Jorge, o primeiro de grande sucesso inaugurado no bairro de Lourdes. Trabalhei lá três anos. Com a ajuda de Lucien, criamos um cardápio francês maravilhoso.
Cheguei à conclusão de que precisava estudar francês, mas só tinha a quarta série. Resolvi parar tudo e fazer o supletivo do primeiro grau. Terminei e fiz o curso técnico de Nutrição e Dietética.
De repente, o Senac me chamou de volta para ocupar o lugar do Lucien. Fiquei cinco anos e, por meio do Senac, consegui uma bolsa para estudar na Suíça.
Quando cheguei lá, ficaram assustados, perguntando onde eu havia aprendido a cozinhar. Respondi que tinha sido com um francês no Brasil. Eles não acreditavam. Eu estava em um patamar muito alto, fruto da dedicação ao lado daquele mestre.
Aprendi muito na Suíça, era um verdadeiro exército. O trabalho era duro, com alta cobrança e professores extremamente exigentes. Após seis meses, acabei virando professor, dando aula em francês todas as manhãs.
Quando voltei ao Brasil, percebi que estava muito acelerado, enquanto as coisas aqui ainda caminhavam devagar. No País, a cozinha ainda era vista como subemprego. Os cozinheiros não podiam ir ao salão, mas comigo não. Onde trabalhei, eu assumia a casa, dava as cartas.
Com 22 anos, eu já fazia isso. Ia às mesas conversar com os clientes e, por ser negro, alguns nem olhavam na minha cara. Essa realidade de subemprego foi sendo quebrada ao longo do tempo.
Alguns chefs estrangeiros e de São Paulo começaram a romper essa barreira na década de 1980. Em 1990, Belo Horizonte vivia um forte movimento de almoços executivos, com intensa circulação de empresários.
Os restaurantes cresceram e foi nessa época que assumi o cargo de chef executivo do Grupo Delicatessen Alpino, pertencente ao Grupo Refrigerante de Minas Gerais (Kaiser/Coca-Cola).
Montamos 16 casas de sucesso e chegamos a ter 600 funcionários. A maioria ficava sob minha responsabilidade e da Nelly Monteiro. Eram várias cozinhas com características diferentes: alemã, italiana, pizzaria, bar, churrascaria.
O Fim de Tarde era um bar; o Tip Top, uma casa alemã. Esse movimento ajudou a transformar a cena gastronômica de Belo Horizonte.
Em 1995, abri meu próprio restaurante com um grande amigo: o Vecchio Sogno. Foi um trabalho árduo. Quebramos paradigmas, instalando o restaurante dentro da Assembleia Legislativa, um local onde ninguém costumava ir para comer.
A casa tinha tudo o que um restaurante precisava. Muita gente que hoje está no mercado foi meu estagiário lá.
Ouvindo a sua história, é possível entender a importância dos professores. A gastronomia oferece múltiplas oportunidades de aprendizado além das técnicas, não é?
É verdade. Um bom professor te conduz, e você evolui. Eu dava aula no Vecchio Sogno, e, quando colocava produtos mineiros nas aulas, muitos alunos torciam o nariz. Diziam: “não viemos aqui para aprender a fazer chuchu, jiló ou quiabo.”
Nas décadas de 1980 e 1990, as pessoas pensavam apenas em lagosta e camarão. O restaurante que trabalhava a cozinha simples, de terroir, não tinha muito valor.
Comecei a criar novas demandas ao usar ingredientes como a Maria Gondó, que nem se encontrava para comprar. Chegava ao fornecedor e havia apenas três maços. As pessoas começaram a conhecer e a pedir e assim eu criei um mercado.
Com o umbigo de bananeira, foi a mesma coisa. Hoje, se você quiser, chega uma caixa cheia.
Hoje você tem o La Palma e o Instituto, mas muita gente sente falta do Vecchio Sogno. Ele volta?
Eu não posso falar nada, mas acho que não. O Vecchio Sogno é um negócio pesado.
Por incrível que pareça, hoje, nos jantares que realizo no Instituto, sempre às sextas-feiras, as pessoas falam de algo que viveram lá. Foram pedidos de casamento, inícios de namoro, passeios com os pais… Lembram de quando eram crianças e visitaram a cozinha do restaurante.
Eu gostava de fazer um rococó de chocolate com as crianças. É muito bom ver como você também transforma a vida das pessoas gastronomicamente.
Meus alunos costumam dizer: “faço curso com você porque quero aprender também a comer melhor, a escolher melhor.”
Os alunos também transformam o próprio paladar. É muito importante quebrar paradigmas: “não como isso, não como aquilo…”
Experimente! Abra o coração.
Há quem diga: “sou chata para comer.” Essa expressão é tão ruim. É melhor dizer que ainda não sabe apreciar determinados produtos. Se você se permitir provar e degustar, será muito mais feliz gastronomicamente.
Sobre a cozinha brasileira e, em especial, a mineira, que nos últimos anos alcançou reconhecimento internacional, qual é o papel delas na sua cozinha?
No Vecchio Sogno, eu já introduzia muitos produtos brasileiros nos pratos. Hoje, há uma nova geração de profissionais executando excelentes trabalhos na cozinha mineira, uma cozinha modernizada e criativa.
Está acontecendo aqui o que ocorreu na Itália: há a cozinha de raiz e a cozinha italiana estilizada. No Brasil, esse movimento cresce fortemente, principalmente em Minas Gerais, com a chegada de chefs que fazem uma cozinha mineira de ponta, usando produtos do Cerrado, sem a pressão que eu enfrentei.
Nunca tive coragem de abrir um restaurante de comida mineira, porque, naquela época, as pessoas não aceitavam: mandavam tirar os produtos do prato.
Quem quebrou essa barreira foram o Dona Lucinha e o Xapuri, que recebiam muitos turistas.
Hoje, o próprio mineiro passou a valorizar fortemente a sua gastronomia. Parabéns a esses jovens chefs que estão fazendo um lindo trabalho.
Uma curiosidade comum é sobre a criação de pratos. Como você trabalha, além de absorver todas essas influências, para criar um novo prato? Você acorda inspirado ou é fruto da labuta do dia a dia?
Nesta semana, por exemplo, criei um prato para a minha aula. Queria propor algo diferente.
Planejava servir um gaspacho, mas não queria apresentá-lo da forma tradicional. Então servi o gaspacho com tartar de manga e uma pasta de queijo dentro do tartar. O gaspacho, feito com tomate e pimentão assados, foi colocado por baixo, dando um sabor diferenciado.
Para o prato principal, queria trabalhar a abóbora, mas de um jeito que os alunos se surpreendessem. Fiz uma moqueca de abóbora, bem saborosa. Costumo servir esse prato com um molho à base de banana e mostarda, mas desta vez resolvi inovar: dei um toque com molho de lichia e limão-capeta, criando um sabor muito interessante, servido com peixe grelhado.
O resultado ficou maravilhoso. É preciso ter essa percepção de como combinar ingredientes, porque muitas vezes a união entre eles cria o efeito desejado na boca.
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