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Lagoinha: “berço de Belo Horizonte” vem sendo reerguido pela economia criativa

Em meio aos desafios que ultrapassam décadas, empreendedores se mobilizam para requalificar espaços que unem tradições, elementos históricos e cultura contemporânea
Lagoinha: “berço de Belo Horizonte” vem sendo reerguido pela economia criativa
Empreendedores da economia criativa, como Fatini Forbeck, do "Aquilombar", fazem um convite às pessoas para se juntarem, organizarem e fortalecerem enquanto comunidade. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

“Berço da capital mineira”, reduto da boemia, da cultura e das tradições: a Lagoinha, ao longo da história, vem perdendo a essência devido às constantes intervenções urbanas que a colocaram em posição de isolamento em relação à cidade. O abandono, no entanto, vem se transformando em luta, articulada principalmente pela comunidade e empreendedores da economia criativa em Belo Horizonte.

Incentivados por iniciativas de sucesso na capital mineira, como o Mercado Novo e o entorno da Praça Raul Soares, o setor criativo demonstra força, oferecendo muito mais que produtos e serviços à população. O segmento vem se articulando para transformar e requalificar espaços, unindo seus atrativos comerciais à criação de um vínculo social e econômico com as regiões onde estão inseridos.

Segundo a analista do Sebrae Minas Nayara Bernardes, a economia criativa, por trabalhar com aspectos relacionados à cultura e identidade, é capaz de se transformar também em uma importante âncora para o senso de pertencimento. “Quando preservamos a identidade cultural de um local é muito mais fácil conseguir requalificar a região”, argumenta.

Além da força de transformação social e cultural, o setor também se destaca na geração de emprego e renda para as populações locais. Em Minas Gerais, o segmento é responsável por gerar mais de 450 mil empregos formais, com o setor cultural representando 54% do total de contratações. Os dados são do levantamento “Radar da Economia Criativa em Minas Gerais”, publicado pelo Observatório P7 Criativo, braço de pesquisa do hub.

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Roda de samba em estabelecimento na Lagoinha em Belo Horizonte
Economia criativa fortelece cultura local e incentiva a produção de artistas independentes. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Na Lagoinha, apesar dos desafios enfrentados, a economia criativa vem se fortalecendo ano a ano com o apoio da comunidade e de movimentos sociais. A solução para mais avanços, segundo Nayara Bernardes, passa pela colaboração entre os setores: público, privado e terceiro setor.

“O setor público precisa de fato reconhecer a importância do local para elaborar políticas públicas que favoreçam o segmento. O setor privado depende de ações públicas como investimento em segurança e infraestrutura para poder investir e gerar negócios. Já o terceiro setor é um importante mediador, revelando a voz desses lugares e apresentando o que eles precisam para se desenvolver”, ressalta.

Apesar de avanços na articulação entre os setores, o atual cenário na Lagoinha exige persistência e resistência para que o “berço de Belo Horizonte” volte a ser reerguido. “Você pensa que às vezes o bairro está abandonado por acaso, mas o abandono também tem quem mande, tem quem queira, e tem quem lucre”, revela um morador local.

Desafios que percorrem décadas

Foto histórica da Lagoinha em Belo Horizonte, reduto da economia criativa
Praça Vaz de Melo em 1930, antes de dar lugar ao Complexo que fragmentou a paisagem da Lagoinha. | Crédito: Reprodução/Arquivo Público Mineiro

“A Lagoinha, ao longo da história, vem construindo uma relação ambígua de proximidade e distância do centro da capital mineira: proximidade em termos geográficos e distância em sua realidade socioeconômica.” A análise mencionada no estudo “Do outro lado da linha do trem: História e intervenções no bairro Lagoinha”, mostra que o território, desde o seu nascimento – junto à Capital no final do século XIX – vem sofrendo com intervenções que descaracterizam pouco a pouco a cultura e o legado da região.

O estudo destaca que uma das ações de maior impacto na dinâmica do local foi a construção do complexo ferro-rodoviário, na década de 1980. A região, que até então era integrada ao promissor centro de Belo Horizonte, com comércio agitado e bares movimentados, se fragmentou e mudou por completo.

Com o rompimento do eixo centro-bairro e o notório abandono do poder público, a Lagoinha foi se degradando. Sem investimentos em infraestrutura e preservação patrimonial, quatro décadas depois, o “berço de Belo Horizonte” também passou a ser conhecido como a “Cracolândia de BH”.

A sensação de abandono se reflete nas principais vias da região, que hoje é composta por cinco setores (Lagoinha, Bonfim, São Cristóvão, Vila Senhor dos Passos e IAPI) que formam a “Área de Diretrizes Especiais (ADE) Lagoinha”.

Edifícios degradados são comuns na Lagoinha
Quem passa pelas ruas da região encontra edificações degradadas e comércio fechado. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Ao caminhar pelas ruas Itapecerica, Além Paraíba, Fortaleza, Serro, Sebastião de Melo, Guapé, bem como nas praças 15 de Julho, Praça do Peixe, além da fragmentada Praça Vaz de Melo, é possível observar que os desafios ainda estão longe de serem superados.

Para os empreendedores da economia criativa na Lagoinha, a resistência é ainda mais significativa. Os profissionais do território necessitam de constantes adaptações para manter os negócios em movimento, e ao mesmo tempo lutam para que aconteça uma efetiva transformação em toda a região.

Tradição familiar centenária é símbolo de resistência

Gastronomia é importante segmento da economia criativa na Lagoinha
Com receita centenária, esfihas da família Abuid conquistam o paladar de quem visita a Lagoinha. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Terceira geração no comando da “Prazer da Esfiha”, Luiza Abuid carrega consigo a missão de manter viva uma tradição centenária na Lagoinha, mais especificamente na rua Itapecerica. Seus bisavós são imigrantes da Síria e foram uma das primeiras famílias a povoarem o território por volta de 1916.

Luiza Abuid conta que o primeiro negócio da família foi uma loja de tecidos. A culinária, segundo ela, começou de forma informal nas festas produzidas pelos avós e logo conquistaram o paladar dos mineiros.

O negócio ganhou forma e por décadas funcionou nos fundos da casa da família, preservando a receita original, que hoje é comandada por Samira Abuid, mãe de Luiza. “A famosa esfiha de carne só a minha mãe que faz”, comenta.

Produção de esfihas na Lagoinha
Samira Abuid é a única com o “dom” de fazer as famosas esfihas de carne. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Há cinco anos, a jovem empreendedora, junto com o pai, decidiu montar uma loja física surpresa para a mãe. Em razão da situação da região, Luiza comenta que a família chegou a cogitar se instalar em outros locais.

“Pensamos em outros lugares, mas a Lagoinha é o lugar que a minha mãe mais ama, ela nasceu e cresceu aqui. As pessoas têm um certo preconceito, de que a Lagoinha é só Cracolândia, mas queremos quebrar esse paradigma”, destaca.

Inicialmente, a loja era composta por um balcão e cozinha aberta e hoje está em plena expansão. A família estruturou serviço de delivery, cresceram em meio à pandemia e há três meses anunciaram uma nova ampliação no espaço, que vai contar também com uma galeria de arte para exposições junto a coletivos de artistas.

Além do propósito de transformar a região através da gastronomia, a empresa também se orgulha por contratar pessoas que, por muitas vezes, não têm oportunidades. “A gente dá voz às minorias, priorizamos imigrantes, refugiados, pessoas que estão recomeçando suas vidas e precisam de uma chance”, explica Luiza.

Em relação ao futuro, a jovem empreendedora revela que apesar de não ter o sonho de seguir na cozinha, lutará até o fim para manter o legado da família na Lagoinha. “Esse nunca foi o meu sonho. Sou fotógrafa, mas abstive do meu sonho para sonhar junto com minha mãe, assim como meu pai, que trabalha com veículos. O futuro é muito incerto, não sabemos como vai ser, mas nunca vamos deixar morrer uma tradição”, conclui.

“Espaço de possibilidades” reacende a esperança da região

Espaço cultural Aquilombar na Lagoinha  emprega artistas independentes da economia criativa
“O Aquilombar na Lagoinha é um espaço onde a gente se sente confortável enquanto artista, espero que a Lagoinha e a cidade tenha mais territórios como este” reforça a artista Lele Cirino. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Além de abrigar ideias e empreendimentos centenários, a Lagoinha também vem se tornando reduto de novos negócios de impacto social e cultural. Também na rua Itapecerica, o Aquilombar, idealizado pela comunicadora, empreendedora e líder comunitária, Fatini Forbeck, faz um convite às pessoas para se juntarem, organizarem e fortalecerem enquanto comunidade.

A casa de eventos está há sete meses em funcionamento e já recebeu mais de 35 mil pessoas, o que comprova a alta demanda por negócios da economia criativa na Lagoinha. “Chegamos para o berço da boemia, do samba, da cultura, do Carnaval. Atuamos nessa perspectiva de retornar para onde tudo começou, sempre ressaltando as características originais do território”, explica a empreendedora, que já é moradora da Lagoinha há pelo menos três anos.

Antes de iniciar com a casa, a empreendedora fez questão de avisar a comunidade sobre o novo estabelecimento. “Falamos do propósito, fomos bem acolhidos e abrimos a porta da casa. Pessoas que são do território trabalham aqui, geramos mais de 40 empregos locais. O nosso vínculo com a Lagoinha não é só cultural, ele é um vínculo social e econômico também”, pontua.

Espaço cultural na Lagoinha reune moradores de todas as idades
Espaço Aquilombar possibilita, trocas, conexões e interações entre diferentes gerações. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

A Aquilombar busca se manter a partir de projetos de lei de incentivo a cultura, além de sempre se reinventarem para viabilizar novas formas de captação de renda para custear os eventos e remunerar os artistas locais. “90% dos artistas que tocam na casa são independentes, negros, LGBTQIA+, pessoas periféricas, egressas do sistema socioeducativo”.

Atualmente, a casa recebe shows de samba, funk, reggae, pagode, ensaios de Carnaval, além de feiras, lançamentos de livro, rodas de conversa e eventos corporativos. “E uma casa de possibilidades. Ela consegue se adaptar de acordo com a proposta”, afirma.

Empreender exige coragem para causar impacto

Empreendedora da Casa Rosa do Bonfim
Para Paulina Ribeiro, burocracias e contradições do setor público prejudicam empreendedores da região. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Há alguns quarteirões da Itapecerica, no bairro boêmio Bonfim (ADE Lagoinha), uma charmosa construção da década de 30 vem ganhando destaque no cenário cultural local. Idealizado pela empreendedora Paulina Ribeiro, a “Casa Rosa do Bonfim” é um espaço multiúso que abriga rodas de samba, workshops, feiras, eventos corporativos e até casamentos.

Segundo a idealizadora, que mora há cerca de trinta anos no local, o imóvel foi comprado degrado e até então seria demolido devido às condições externas. Entretanto, com a estrutura interna intacta, foi realizado um processo de restauração, remanejando o espaço interno e construindo três moradias, além de uma fabriqueta de roupas.

O negócio da moda, no entanto, não foi bem-sucedido. “Decidimos então utilizar o espaço para criar um “rolê”, que informalmente já era um sucesso na família”, afirma.

Casa Rosa do Bonfim em Belo Horizonte
Quem passa pela Casa Rosa do Bonfim encontra música, cultura e diversidade. | Crédito: Leonardo Morais/Diário do Comércio

Assim como Fatini Forbeck, Paulina Ribeiro também considera a recepção da vizinhança como fundamentais para que o negócio aconteça. “Fiz uma carta e enviei para toda a vizinhança para entender os impactos da casa. Todos, sem exceção, deram um feedback positivo”, ressalta.

Apesar das problemáticas da região, o maior desafio da empresária é a relação do modelo de negócio da empresa com o poder público, que vem proibindo a venda de ingressos, o que torna inviável planejar e realizar novos eventos. “Se não podemos vender ingressos, não temos garantia”, reforça.

Segundo ela, para o poder público, não existe uma nomenclatura o formato “bar dançante”. Apenas casas de shows e boates podem comercializar ingressos. “Bares com shows não podem vender ingressos, não podem ter bandas, no máximo uma dupla. Várias casas em Belo Horizonte com esse mesmo formato estão sendo autuadas em razão dessa limitação”, revela.

O que era para se tornar um empecilho para empreender na Lagoinha, transformou-se em motivação para transformar a realidade da região. “Hoje entendo que meu papel de cidadã pode fazer a diferença local e já estamos fazendo, junto ao movimento Lagoinha Viva”, afirma.

Comunidades criativas fortalecem o território

Circuito Lagoinha em Belo Horizonte
Idealizado pelo “Viva Lagoinha”, “Rolezinho Lagoinha” percorre 12 km de caminhada pelo território. | Crédito: Divulgação/Viva Lagoinha

Fundado em 2011 pelo publicitário e morador da região, Filipe Thales, o “Viva Lagoinha” se transformou em um dos principais instrumentos para reconectar pessoas que acreditam na requalificação da Lagoinha através da economia criativa. A iniciativa atua realizando campanhas publicitárias e ações ligadas a arquitetura, urbanismo, gastronomia, eventos, sempre com foco em levar um novo olhar para o território.

Para fortalecer os projetos, foi elaborado um City Branding (criação de uma marca do bairro) para evidenciar potenciais da região. Além disso, o Viva Lagoinha atua em três diferentes frentes com foco em mitigar as problemáticas estruturais que foram levantadas:

  1. A baixa estima do morador: Foi criado o “Rolezinho Lagoinha”. São 12 km de caminhada pelo território, onde são criadas conexões com o objetivo de fazer com que as pessoas se reaproximem do berço da cidade de Belo Horizonte com mais empatia.
  2. A falta de vida noturna: Para a vida noturna, o Viva Lagoinha busca atrair novos negócios para a fortalecer a região. Um dos projetos em destaque com esse foco é o “Rolezinho na cozinha”, que evidencia o potencial gastronômico local, impulsionando os negócios.
  3. O Alto índice de pessoas em situação de rua: São realizadas discussões diretamente com a prefeitura, participações em fóruns, discussões no Ministério Público, além de outras ações ligadas com o poder público.

“Através dessas iniciativas conseguimos realizar importantes campanhas na região, como o Cura em 2019 para um projeto de construção de um mirante na rua Diamantina. Conseguimos também trazer uma cervejaria parceira, a Wäls, e a própria fabricante do copo lagoinha”, destaca Filipe.

Filipe também liderou uma petição eletrônica para Nadir Figueiredo oficializar em Belo Horizonte o nome copo Lagoinha. O pedido foi aceito e o publicitário se tornou embaixador do copo Lagoinha. “Hoje carrego essa missão de falar da resistência, do charme e da democracia, tanto do território quanto do copo Lagoinha”, explica.

Os resultados das ações em comunidade, segundo Filipe Thales, tem sido positivos, com crescimento de investimentos, em especial do setor de economia criativa na Lagoinha. Além das articulações com empreendimentos locais, o território também firmou parcerias com os consulados britânico e italiano, o Instituto de Estudos de Desenvolvimento Sustentável, além da articulação “afrormigueiro”, outro trabalho de relevância relacionados ao fortalecimento de negritudes.

O futuro do empreendedorismo criativo é transversal

O futuro da economia criativa na Lagoinha, assim como em outras regiões ao redor do mundo passa pela valorização do espaço público e a transversalidade do setor. Para a especialista em economia criativa e diretora da Garimpo de Soluções, empresa pioneira no segmento, Ana Carla Fonseca, “cada vez mais a gente vê uma fusão entre os setores da economia criativa, porque a criatividade em si é transversal”, argumenta.

Ana Carla Fonseca acrescenta que é necessário desenvolver ações de forma integrada com outros métodos disciplinares. Segundo ela, a valorização do contexto urbano, seja de pequenas cidades, distritos, conjunto de regiões, a partir do seu espaço público também deve ser entendida como uma forma de movimentação da economia.

Outra vertente importante mencionada pela diretora no que se trata de futuro e tendências é a capacidade de envolver as pessoas por meio das histórias, para que elas se sintam de fato bem-vindas no espaço. “Essa percepção de gerar um ecossistema criativo para que a economia criativa seja mais forte precisa passar pelo investimento em um espaço público, além de maior valorização no que diz respeito ao tradicional, artesanal e que tenha história”, conclui.

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