Inclusão produtiva pode ser diferencial para a competitividade de pequenos negócios

São grandes os desafios das Micro e Pequenas Empresas (MPEs). Acesso ao crédito, competitividade, estrutura financeira e alcance de marca são apenas alguns deles. Mas e se somado a tudo isso ainda viesse mais uma palavrinha? Inclusão. Há quem diga que tornaria o processo ainda mais difícil. Mas existe também quem aposte, apoie e incentive a iniciativa na esperança de fazer um mundo melhor.
O DIÁRIO DO COMÉRCIO foi atrás de especialistas, entidades e empresários para entender um pouco mais sobre a importância e as dificuldades que os negócios – especialmente os pequenos – enfrentam quando se dispõem a fazer sua parte na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, por meio da inclusão produtiva.
Autoridade máxima quando o assunto são os pequenos negócios, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) define que inclusão produtiva é a inserção de pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social no mundo do trabalho, seja via emprego formal ou via empreendedorismo, de modo que sejam capazes de gerar sua própria renda de maneira digna e estável, e assim superar processos crônicos de exclusão social.
Isso inclui grupos sub-representados, marginalizados e em posição de vulnerabilidade social. Estamos falando de pessoas com deficiência, mulheres, jovens, idosos e minorias étnicas – como transexuais, imigrantes, negros e pessoas em situação de rua, por exemplo. Muito se ouve sobre a resiliência e o empenho desses grupos na hora de empreender. Há inúmeros dados, campanhas de ampliação de crédito, fortalecimento da rede de apoio para formação de uma carteira de clientes e até mesmo incentivos públicos e privados para tirar uma boa ideia do papel. Mas e quando ter o próprio negócio não é uma opção? É aí que pessoas como Hercyl, Lucélio e Fabiano podem fazer a diferença.
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Mais que uma estratégia, uma missão
E eles têm feito, mesmo quando suas expectativas são frustradas. Hercyl Suhurt Salgado pertence à quarta geração da família proprietária da Bazar René, em Cataguases, na Zona da Mata. Empresa centenária especializada em vestuário, cama, mesa e banho, sempre teve em seu quadro jovens profissionais. Isso porque as gerações anteriores se empenhavam em oferecer oportunidades de primeiro emprego à população. Mas, de uns tempos para cá, isso mudou. O quadro hoje é mais diverso. Para o socio-proprietário da rede, é importante mesclar a garra e a coragem da juventude com a sabedoria de profissionais mais experientes. Mas essa diversidade não se restringe apenas à faixa etária dos funcionários.
O empresário conheceu Jully há alguns anos, durante uma campanha política, quando ele se candidatou nas eleições municipais. Ela, uma mulher trans, sempre muito empenhada e disponível, se destacou na equipe. Foi então que ele a convidou para compor o quadro da Bazar René. A primeira passagem pela empresa não deu certo, mas Hercyl não desistiu.
“Na época, a ‘galera’ mais jovem não a aceitou muito bem. Ela saiu, mas não me conformei. Reestruturei a equipe e a trouxe de volta depois de um ano. Hoje ela é nossa principal vendedora e sempre se destaca frente aos demais”, diz.
E a iniciativa que nasceu por admiração e amizade foi estendida para a filial da cidade de Leopoldina, na mesma região. Desde o fim do ano passado, a unidade também conta com uma profissional trans: a Rayssa.
“No início não foi algo planejado, aconteceu pela admiração e amizade que criamos em outro período. Não deu certo, mas insisti e, ao entenderemos a importância de ações como essa, estendemos a oportunidade para Leopoldina. Está sendo muito legal, elas são muito competentes, abraçaram a oportunidade e estão gerando bons resultados. Tenho 34 anos e vejo com normalidade a presença e a atuação das duas no meu negócio. Elas sabem transformar o preconceito que recebem em força e respondem com dedicação e disposição no trabalho. Isso é inspirador”, afirma.
Para Jully Moreira, a palavra que define essa trajetória é uma só: gratidão. “A atitude dele é excepcional e outros comerciantes deveriam fazer o mesmo, dando oportunidade para pessoas vulneráveis. Eu não sou a primeira mulher trans a conseguir um emprego na cidade. Mas também não fui a última a procurar. Todas nós vivemos uma batalha muito grande quanto a isso, porque até hoje existe muito preconceito. É uma batalha atrás da outra e é ainda mais difícil em cidade pequena. Eu mesma já enfrentei preconceito no mercado de trabalho e enfrento até hoje, porque sempre tem alguém que faz piadinha, não me chama pelo nome, ou me trata como ‘ele’. Mas eu sei o meu valor, sei me impor e dar a volta por cima”, relata.
Mas se engana quem pensa que na cidade grande tudo é mais fácil. Às vezes, pode ser até pior. Aparecido César da Silva, mais conhecido como Cidão ou Bailarino, tem 64 anos e morou por mais de dez anos nas ruas de Belo Horizonte. Ele foi parar nessa situação depois de perder sua esposa e as filhas trigêmeas no parto. Bailarino conta que depois daquele ocorrido, “tudo perdeu o sentido”. Ele é de São Paulo. Naquela época, saiu de lá rumo ao Paraná. Depois, passou por Campinas e Três Corações (Sul de Minas) até chegar à capital mineira.

por mais de dez anos | Crédito: Mara Bianchetti
“Vim com promessa de emprego. Trabalhei um mês. De início fiquei em albergue, mas fui roubado umas três vezes e entendi que a rua era mais segura. Passava o dia fazendo minhas reciclagens. […] A gente passa muita humilhação (nas ruas), mas o lado bom é que você conhece muitas pessoas”, recorda.

Tudo mudou quando Lucélio, o proprietário da casa de shows de rock’n roll Mister Rock, no Prado, na região Oeste, deu uma oportunidade ao Cidão – como ele ficou conhecido pelos frequentadores do estabelecimento – em 2017, ainda quando a casa de shows funcionava na avenida dos Andradas, atrás do Parque Municipal, na região central da cidade. Cidão fala com orgulho de suas tarefas no bar, como cuidar da manutenção da casa e organizar doações recebidas em eventos com entrada social, por exemplo.
“Hoje eu tenho meu dinheirinho certo, meu cantinho para morar e ainda tenho a oportunidade de ajudar a arrecadar alimentos para quem precisa. Isso é muito recompensador e eu sou muito grato ao Lucélio, afinal, eu sei o que é passar fome nas ruas, enquanto se espera um prato de comida chegar e, quando não chega, se contentar com um gole de cachaça”, diz.
E as dificuldades surgem também para quem tenta fazer a diferença. É o que conta Lucélio Henrique da Silva. Seu negócio tem um quadro interessante de diversidade, incluindo dois ex-moradores de rua. O empresário relata que já teve problemas com a fiscalização trabalhista, por ser acusado de manter essas duas pessoas – sendo o Cidão uma delas – em condição de trabalho escravo.

“Isso não é verdade. Estou fazendo a função do Estado de ressocializar essas pessoas, dando moradia e emprego. Acredito que boa parte dessa população não está nas ruas porque quer, e precisa apenas de uma oportunidade. Foi isso que fiz. O Cidão pedia as latas dos eventos e, conversando, descobri que ele morava nas ruas. Foi aí que resolvi dar uma oportunidade e o convidei – junto com o Claudiomar – para trabalhar para mim. Pouco tempo depois assinei a carteira de trabalho deles”, se defende.
Prova disso, conforme Lucélio, é a dedicação desses funcionários que estão com ele. “Eles são muito gratos pela oportunidade. Demonstram uma lealdade muito grande e são meus funcionários mais confiáveis. Eles brigam pela empresa se necessário, não aceitam e não deixam ninguém agir de forma errada com a empresa”, conta. De fato, a reportagem conversou com clientes do Mister Rock que conhecem os funcionários e acompanham de perto seus trabalhos, suas experiências e as oportunidades que recebem no estabelecimento.

Crédito: Reprodução redes sociais Mister Rock
Inclusão produtiva: de oportunidade a ingratidão
Mas nem tudo são flores e nem todos são gratos. A experiência de Fabiano Amorim Matta Machado, o proprietário do restaurante Isto e aQuilo, que funciona há quase 40 anos na capital mineira, com os esforços na área da inclusão produtiva não foi positiva. O empresário afirma que tentou trabalhar com ex-presidiários, transsexuais e imigrantes. Porém, nenhum deles correspondeu aos requisitos para permanecer no emprego.
“Eu entendo que por uma questão histórica e cultural, nossa tendência é de exclusão. Mas procurei ir numa linha diferente. Me informei, fiz adaptações no restaurante, busquei capacitação inclusive para os demais funcionários saberem se relacionar com quem estava chegando, mas eles é que não corresponderam ao que precisávamos. Não houve compromisso, dedicação, tampouco gratidão pela oportunidade”, lamenta.
Ele se refere a faltas injustificadas, comportamentos inadequados e não cumprimento de horários nem regras da casa. “Eles começaram bem, mas depois desandaram. E entendo que eles não são assim porque são excluídos. Os funcionários tradicionais, às vezes, também deixam a desejar e são igualmente dispensados. Mas pensei que com essa turma seria diferente”, diz magoado.
Ainda assim, Fabiano garante que não vai desistir de fazer sua parte. Hoje, a empresa conta com um quadro de funcionários majoritariamente composto por mulheres e deficientes auditivos, mas o empresário quer ir além.
“Sigo na tentativa, pois está enraizada em mim essa vontade em promover o acolhimento e a diversidade. Acho de suma importância darmos chances para essas pessoas e sigo com meu propósito. Tenho vagas abertas nas duas unidades e não há restrição alguma para as ocupações. Uma hora vai dar certo”, acredita.
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