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Novo Normal: Gestão do bem histórico e cultural enfrenta desafios

Novo Normal: Gestão do bem histórico e cultural enfrenta desafios
Minas Gerais concentra 60% do patrimônio tombado, quatro deles reconhecidos pela Unesco | Crédito: Leonardo Miranda

Nunca foi uma missão fácil fazer a gestão do patrimônio histórico e cultural no Brasil. No “país sem memória”, ainda pouco preservamos nossos monumentos. Atrair a atenção e o dinheiro da iniciativa privada para a conservação, preservação e fruição desses bens sempre exigiu um esforço hercúleo. E a situação não é muito melhor em relação ao principal responsável pelo estabelecimento dessa dinâmica: o poder público.

Em 2020, as políticas de isolamento social, tão necessárias à preservação da vida diante da Covid-19, esvaziaram museus, igrejas e outros bens históricos e culturais. Sem público, sob o risco de perder qualquer patrocínio ou apoio existente, custos crescentes e ainda pouco afeitos à tecnologia, eles precisaram de muito mais que imaginação para sobreviver.

Tecnologia, segmentação de público, trabalho em rede e atuação “figital” já fazem parte do novo normal da gestão de patrimônio. E, no Estado que concentra 60% do patrimônio tombado nacional, dono de quatro patrimônios culturais reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a (Unesco), isso pode fazer total diferença na recuperação econômica no pós-pandemia.

Digitalização foi grande aliada na pandemia

Um conjunto com 18 equipamentos culturais voltado para a promoção da cultura e do turismo do Estado, com foco na difusão do conhecimento e na economia criativa, fazem parte do Circuito Liberdade. O MM Gerdau – Museu das Minas e do Metal e o Memorial Minas Gerais Vale integram a lista de sete equipamentos sob gestão de parceiros.

Para eles, a digitalização e as redes sociais foram as grandes armas para enfrentar os piores momentos de isolamento e são ferramentas que vieram para ficar. A experiência exitosa, porém, não substitui a interação presencial e o futuro exige saber trabalhar nos dois mundos ao mesmo tempo.

De acordo com a diretora do MM Gerdau, Márcia Guimarães, apesar de o museu já ser tecnológico e um nativo digital, esse tem sido um período de muito aprendizado. Em março de 2020, a expectativa era de um retorno rápido – junho. Apenas em dezembro o museu foi reaberto por três semanas.

“Abrimos até surgir o primeiro caso positivo na equipe. Em uma instituição dessas, um positivo significa quase toda a equipe em quarentena. Daí decidimos que a reabertura só se dará quando estivermos realmente seguros. Adotamos um olhar de organização da casa. Temos trabalhado muito, construindo o plano museológico, consolidando processos e muito nas ações digitais. Somos uma referência nessas ações. O ‘Museu é Nerd’, realizado na semana passada virtualmente, por exemplo, dava fila no presencial”, explica Márcia Guimarães.

A tranquilidade trazida pelo modelo de parceria público-privada (PPP) – que inclui Gerdau e a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM) – deu à equipe condições de trabalho que não são tão comuns em outros aparelhos culturais. O orçamento foi mantido e o alcance virtual ampliado. No Youtube os acessos cresceram 112% e no Instagram, 132% desde o início da pandemia. Em 2019, foram 1,78 milhão de acessos nas redes sociais. Em 2020, mais de 4 milhões.

“Temos uma situação de conforto porque somos uma PPP, com um contrato muito bem feito. O Estado cede o imóvel e a missão do parceiro privado é manter o prédio e a instituição viva. Mas sabemos que somos uma exceção. Estamos fazendo reparos na infraestrutura predial e investimentos. Antes, fazíamos uma ação presencial que repercutia nas redes. Agora, temos que pensar na rede e no presencial ao mesmo tempo. Não tem mais como abandonar os conteúdos digitais. Potencializamos um público que não pode ser abandonado”, destaca a diretora do MM Gerdau.

Tameirão: crise ditou novos modelos | Crédito: Gustavo Pessoa

Segundo o gerente do Memorial Minas Gerais Vale, Wagner Tameirão, o museu passa por uma experiência parecida. A pandemia já alterou a relação das pessoas com a cultura e os espaços de patrimônio. Isso deve fazer com que o acesso seja rediscutido e ampliado em um futuro próximo, valendo-se das ferramentas tecnológicas. A live “O futuro de um passado recente”, realizada na semana passada, propôs a reflexão.

“Acredito que as coisas já não estavam no eixo certo. Qual a relação de um cidadão de Ouro Preto com o patrimônio, por exemplo, ou ele é voltado só para o turista? Em termos patrimoniais o ganho é a percepção de valor. O digital amplia o público e o diálogo. Neste momento existe o ‘over’ digital porque ele é a única forma de se fazer. Novas frentes de economia serão descobertas. Mas me preocupa a sustentabilidade do patrimônio como um todo, do investimento na cultura”, avalia Tameirão.

Nesse sentido, para o gestor, a iniciativa privada, participante diretamente ou não da cadeia produtiva da cultura, precisa assumir maior protagonismo, ainda que o dever seja do Estado.

“Já não dava pra contar sempre com o Estado. A iniciativa privada tem um papel que deve ser potencializado. Onde entram os outros players? A cadeia inteira tem que refletir. Provamos que a cultura é um oásis, ela salva. Qual o papel social dos museus? Qual o nosso papel no incremento do turismo regional em Minas?”, provoca o gerente do Memorial Minas Gerais Vale.

Concepção do Instituto Inhotim serve como inspiração

Avaliado pelo Ministério do Turismo (MTur) como um destino indutor do turismo estrangeiro no Brasil, o Instituto Inhotim, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), é um caso de sucesso que inspira outras instituições.

O espaço, que reúne arte contemporânea e jardim botânico, é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Assim, o Inhotim é uma entidade privada, sem fins lucrativos, mantido com recursos de doações de pessoas físicas e jurídicas, bilheteria e realização de eventos.

Em 2019, Inhotim recebeu quase 270 mil visitantes e cravou a marca de 3 milhões em 11 anos de portas abertas. Do total, cerca de 20% são estrangeiros. Mas nem esses números foram capazes de blindar o Instituto contra duas tragédias sucessivas: o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, em 2019, e a Covid-19, em 2020.

De acordo com o diretor-presidente do Instituto Inhotim, Antonio Grassi, apesar de acostumado às adversidades, a pandemia trouxe um cenário jamais imaginado.

Em 2019, o Inhotim recebeu quase 270 mil visitantes e cravou a marca de 3 mi em 11 anos | Crédito: Ricardo Mallaco

“O Inhotim aparece como exemplo no sentido das possibilidades que temos de projeção. Neste momento existe uma enorme necessidade, em termos de saúde, de um lugar como esse. As pessoas têm ido como quem corre atrás de uma vacina. Apresentamos uma oportunidade gigantesca de fruição, ao estarmos ao livre, é uma outra condição de segurança. Ao mesmo tempo, a gestão passa por descobrir qual a forma de manter o Instituto aberto, mesmo estando fechado. Conseguimos criar muita coisa no espaço virtual, ampliar nossas redes, transformar nossa programação cultural em uma programação que se dá virtualmente. Devemos nos preparar para o que virá, que é a possibilidade de reencontrar a vivência presencial das pessoas. Nada vai substituir o presencial nem em termos econômicos. Em uma instituição em que a bilheteria representa uma parcela importante, como a nossa, é um baque”, explica Grassi.

Foi reforçando parcerias, apoios e patrocínios que o Instituto enfrentou o aumento de custos e redução da bilheteria. Um dos principais argumentos foi a própria responsabilidade social exercida pelo Museu, que tem mais de 70% dos seus 520 colaboradores – entre diretos e indiretos – moradores de Brumadinho. A meta era não fechar postos de trabalho.

“Tínhamos que convencê-los a continuar, mesmo sabendo que existem outras prioridades. Tivemos a sorte de ter parcerias sólidas que acreditaram no projeto e garantiram a nossa perenidade. Isso permitiu que artistas e técnicos utilizassem o nosso espaço para exercer a sua profissão. Desde sempre movimentamos uma grande cadeia econômica. Por exemplo, na construção civil, construímos 23 galerias. Quantos leitos de pousadas e hotéis foram abertos a partir do Inhotim. Perdemos visitantes por conta da tragédia causada pela Vale. Em 2018, tivemos a febre amarela. Somos movidos a pancada. Mas adquirimos alguma sabedoria”, completa o diretor-presidente do Instituto Inhotim.

Patrimônio é forte indutor do turismo

A Associação Pró Cultura e Promoção das Artes (Appa), sediada na Capital, há 27 anos operacionaliza os diversos mecanismos de financiamento à cultura, como leis de incentivo à cultura, fundos culturais, convênios, termos de parceria, termos de ajustamento de conduta (TACs), patrocínios não incentivados entre outros, e vislumbra a oportunidade de gestão de aparelhos culturais via contratos de gestão.

Vieira: setor carece de força política | Crédito: Bruno Lellis

De acordo com o presidente da Appa, Xavier Vieira, o patrimônio precisa ser visto como um grande indutor do turismo e, portanto, da economia. “As PPPs e leis de incentivo viabilizam a conservação e a extroversão do patrimônio público. O restauro é caro, o tombamento dificulta o uso comercial. É importante que seja dado para esses bens algumas alternativas. O acesso será, a partir de agora, viabilizado por meio de ferramentas tecnológicas como realidade aumentada, hologramas, tours virtuais, compondo um repertório de oportunidades que não abre mão da presença física”, avalia Vieira.

Para ele, apesar de ser possível construir experiências presenciais seguras, o setor ainda carece de força política e organização enquanto classe. A busca é por um rearranjo das fontes de financiamento do setor. Por enquanto, a conta não fecha.

“Estamos propensos ao ‘figital’. O público presente vai pagar mais caro e o on-line que será a massa, mais barato. Plataformas como leis de incentivo, patrocínio direto, ingressos vão se misturar. Temos um volume artístico-cultural crescente com o barateamento da produção. Por conta da desigualdade podemos, porém, ter uma elitização da presença com o tíquete médio subindo, mas uma disponibilização do conteúdo via streaming. O Brasil tem uma vocação para a cultura e o turismo. Para aproveitar isso, precisamos investir em educação artística e para o patrimônio. Formar plateias e pessoas mais críticas”, pontua o presidente da Appa.

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