Especial: Pandemia fez surgir novo estilo de vida

Assim como outros conceitos, o nomadismo digital não é exatamente novo, mas ganhou popularidade e novos contornos impulsionado pela transformação digital imposta pela pandemia. Em síntese, o nômade digital é um profissional que aproveita a tecnologia para realizar as tarefas de maneira remota e, ao não depender de uma base fixa para trabalhar, conduz seu estilo de vida de uma maneira nômade.
Ampliado pela possibilidade do armazenamento de dados em nuvem e pela internet de alta capacidade, o nomadismo digital, aos poucos, deixa de ser uma vantagem apenas dos profissionais da tecnologia da informação (TI) para ganhar adeptos em outras atividades e conquistar a confiança de empresas e lideranças de diferentes setores.
Na nova economia a ordem é a entrega de qualidade. Lentamente, sistemas de vigilância e controle vão cedendo espaço aos conceitos de produtividade e inovação.
Modelo de nomadismo digital é considerado catalisador de inovação
O alastramento do Sars-CoV-2, a partir de dezembro de 2019, levou boa parte da humanidade para dentro de casa, literalmente, impondo ao mundo um ritmo de digitalização das relações comerciais e pessoais ainda não visto.
Diante disso, empresas que jamais tinham pensado em adotar modelos remotos de trabalho, do dia para a noite, tiveram que mandar seus funcionários para casa e prover condições de trabalho para que a empresa não parasse de vez.
Acostumado a aconselhar empresas que passam por reestruturação, o diretor-executivo da Avante Assessoria Empresarial, Benito Pedro Vieira Santos, era um desses executivos desconfiados, mas que agora aposta nesse modelo como um catalisador de inovação e atração de profissionais com experiências diversificadas.
“Sempre fui contra o remoto no meu trabalho. Lido com empresários, gosto de olho no olho. A pandemia, porém, ensinou muita coisa. Hoje, mesmo as empresas mais arcaicas, foram obrigadas a ir para o home office e isso é só o começo. Uma coisa é home office e outra coisa é nômade. Estávamos perdendo bons profissionais porque não estávamos atentos a isso. Agora consigo atender até fora do País. Para o futuro vejo um mix de profissionais nas empresas, com partes de nômades, home office e nos escritórios. Assim aumenta a chance de produzir mais e melhor do jeito que for mais confortável pra cada um. As trocas de cultura, de informação, é que fazem a gente crescer”, avalia Santos.

É claro que tal novidade acarreta questões migratórias, regulatórias, tributárias e trabalhistas que ainda precisam ser estudadas de forma mais aprofundada. Segundo a advogada trabalhista, especialista em compliance e fundadora da We Comply, Bruna Oliveira, é preciso tomar cuidado nesse tipo de contratação e deixar o máximo de detalhes registrados em contrato.
“Apesar do nomadismo digital ser um termo e um modelo de trabalho mais antigo do que parece, é, ainda, um modelo em construção. Não se tem uma definição exata. O nômade é aquela pessoa que está em trânsito, não é simplesmente o teletrabalho ou home office. Ela não tem endereço fixo e isso vai além do trabalho. Essa pessoa tem, normalmente, um perfil mais ligado à geração Y, de 24 e 34 anos, com curso superior. A nossa legislação trabalhista passou por algumas mudanças importantes nos últimos tempos, como a flexibilidade de horários e a criação da figura do colaborador hipersuficiente, mas isso ainda não cobre todas as situações que já existem ou ainda vão existir”, pontua Bruna Oliveira.
Para ela, empregados e empregadores precisam avaliar riscos e benefícios criteriosamente. O nômade digital pode ser convocado para uma reunião na sede da empresa eventualmente, por exemplo. Benefícios como planos de saúde e auxílio-alimentação precisam ser pactuados porque vão fugir à regra local.
“As demandas e obrigações têm que estar fixadas no contrato, quais as atividades, compra, manutenção e reposição de equipamentos, reembolsos. E para que tudo isso dê certo, tem que ter compliance. Não dá pra eliminar o risco, mas dá para mitigar e controlar”, garante a advogada.
Preparação
De acordo com a mentora de estratégia de negócios e construção de carreira e fundadora do Instituto Guskuma de Desenvolvimento Humano (IDGH), Priscila Guskuma, o nomadismo exige adequação das antigas gerações e das corporações. E, do outro lado, as escolas precisam preparar os jovens para esse novo mundo desmaterializado.
“Tem muito empresário resistente por causa do sistema de controle. Cada vez mais as empresas precisam focar no resultado e não na quantidade de horas trabalhadas. É uma mudança forte de cultura. A pandemia acelerou as características das novas gerações e os RHs precisam trabalhar essa mudança dentro das empresas. O segundo ponto é como as escolas estão preparando os jovens para esse mundo. Ainda pensamos em empregos que não vão mais existir e em formas de encontrar esse emprego convencionais. Em compensação, os jovens que estão vendo os pais trabalhando em modelos remotos já acompanham essa mudança. A tecnologia está entrando em outras atividades, como o próprio RH e sistemas de venda, por exemplo. E é importante saber que o que dá certo para uma empresa pode não dar para outra, mesmo sendo elas do mesmo segmento”, analisa Priscila Guskuma.
Gestão a distância exige engajamento sistemático
Nascido entre os profissionais da tecnologia da informação (TI), em empresas de base tecnológica, o nomadismo digital vai, aos poucos, aparecendo entre outras carreiras e empresas de setores tradicionais. E, mesmo que incipiente, essa nova situação já começa a afetar os sistemas de recrutamento, seleção, contratação e treinamento.
Para o diretor do Grupo Selpe e NPAWordwice Latam Leader, Robson Barbosa, a pandemia trouxe novas perspectivas para esse grupo de trabalhadores, mas a confusão entre os tipos de trabalho remoto ainda é um problema dentro das empresas.
“O nomadismo é totalmente diferente do trabalho remoto. Os modelos se confundem porque são on-line, e as empresas ainda têm dificuldades com isso. A pandemia abriu os olhos de um grupo maior de pessoas. As empresas que hoje têm esse modelo também enxergam economia nele. É uma forma de contratar excelentes profissionais em países que têm custo de mão de obra inferior, agregando culturas diversas. Em áreas como o marketing digital, atividades de outsourcing, onde as informações estão na nuvem, é mais fácil. A cultura latina valoriza as relações próximas, mas o modelo de vigilância e controle vem mudando. Ele não engaja e não motiva. E agora, pós-pandemia, isso ficou muito claro”, afirma Barbosa.
Nos cargos de alta gestão, a realidade ainda pende para os modelos mais tradicionais de contratação. De acordo com o CEO da Prime Talent, David Braga, a pandemia colocou em evidência a disrupção com um trabalho com muito controle e muita fiscalização.
“Toda crise traz uma ideia de reinvenção, mesmo que forçada. O nomadismo digital não é novo, mas ganhou proporção porque já ficou claro que as coisas continuam acontecendo com o profissional perto ou longe. Isso traz possibilidades do profissional poder trabalhar literalmente de qualquer lugar no mundo. São estágios de amadurecimento. Aprendemos a ser mais digitais e utilizar melhor o tempo. Quando falamos no nomadismo, mais frequente na área de TI, trazendo reflexo para as demais áreas. No que diz respeito à gestão, ele é factível dos níveis médios para baixo porque são especialistas”, explica Braga.
Para ele, a gestão a distância exige um engajamento profundo e a utilização de todas as ferramentas de interação e escuta ativa. Por enquanto ele acredita em modelos híbridos, nunca totalmente remotos.
“Talvez não seja prudente para a alta gestão. O modelo remoto constante pode trazer danos com o distanciamento da cultura da empresa, diminuindo o contato e a troca de informações. Pode trazer um resultado mais mecanizado. A alta gestão por si só precisa estar próxima aos executivos para a troca de informações. Para gerenciar à distância é preciso resolver como criar engajamento. Preciso entender e conhecer quem são os colaboradores, construir times com diversidade, com modelos distintos. Estamos falando de produtividade, o que leva a melhores resultados financeiros. Em como garantir a entrega de resultados através das pessoas”, pontua o CEO da Prime Talent.
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