Sucessão ainda é uma etapa crítica a vencer

Se, de um lado, a tarefa de empreender no Brasil é uma verdadeira batalha e os índices de letalidade das empresas antes do primeiro ano é um dos maiores do mundo, de outro é preciso celebrar a longevidade das que atravessaram décadas e aprender com elas.
Cercadas de estereótipos, as empresas familiares têm demonstrado que organização, firmeza de propósito e muita disposição para o trabalho são itens comuns na receita particular de sucesso de cada uma.
A quarta edição da pesquisa “Retratos de Família: Um panorama das práticas de governança corporativa e perspectivas das empresas familiares brasileiras”, conduzida pelo ACI Institute e Board Leadership Center da KPMG Brasil, divulgada em março, mostra a longevidade das empresas que são criadas e geridas por famílias no Brasil. O estudo revela que 33% delas têm entre 21 e 40 anos de existência, enquanto 30% possuem de 41 a 70 anos e 21% têm mais de 70 anos.
Ainda de acordo com o estudo, a “análise e comparação com os dados das edições anteriores permitem constatar que os negócios familiares estão investindo em profissionalização e atentos às boas práticas de governança corporativa, mesmo nos casos em que as empresas são de capital fechado – aliás, em muitas delas, observa-se uma estrutura de governança que nada fica a dever às empresas familiares de capital aberto. Critérios técnicos têm se firmado como o principal parâmetro para a escolha de sucessores nessas organizações”.
Para o conselheiro de empresas familiares e CEO da Crowe, Marcelo Lico, parte do segredo está na preparação dos herdeiros para o momento da sucessão.
“A sucessão é um momento crítico na vida da empresa e da família. O ideal é que exista uma preparação para isso, que inclui organizar a empresa e também a família. O que percebemos é que as empresas que estão na segunda e terceira geração já preparam seus sucessores. A segunda geração contrata mentorias para preparar os futuros líderes. Hoje a formação desses novos líderes é muito melhor que há 20 anos. Entre as empresas médias e pequenas há uma preocupação com a preparação dos herdeiros. É muito comum que consultores sejam contratados para montar conselhos consultivos. E esse conselho tem o papel de trazer a empresa para o mundo real, e, às vezes, até determinar que alguns herdeiros não estão preparados para assumir a gestão”, explica Lico.

Gestão no DNA
Algumas empresas já fizeram isso instintivamente e começaram numa época em que as expressões “cultura organizacional” e “governança” mal frequentavam o vocabulário empresarial. A rede de livrarias Leitura, fundada em 1967, é uma delas. Hoje presente em 21 estados e com 94 unidades, começou vendendo livros usados, angariados com amigos e familiares, em uma pequena loja na Galeria Ouvidor, no hipercentro de Belo Horizonte.
A ousadia de dois primos hoje resulta na maior rede de livrarias do Brasil, que se prepara para ultrapassar a barreira das 100 lojas no ano que vem – sendo a próxima inauguração no Recife (PE), em outubro – e continua nas mãos da mesma família, incluindo outros irmãos, primos e sobrinhos.
De acordo com o presidente da Leitura, Marcus Teles, um dos segredos do sucesso está no estabelecimento de regras claras – nem todas escritas desde o início – para organizar a participação da família nos negócios.
“Temos uma família muito grande e unida – são 15 irmãos – e ao longo do tempo muitos entraram e saíram da Leitura. Estabelecemos que, para participar, a pessoa precisa passar pelos vários departamentos, sentir e conhecer como funciona a operação. Nem todos ficam. Eu comecei com 13 anos, como office boy. Fui caixa, vendedor e cheguei a gerente de loja. Isso pra nós é fundamental. Sendo parente ou não, a pessoa tem que fazer um caminho dentro da empresa. Hoje temos seis irmãos trabalhando diretamente na rede e cerca de 15 sobrinhos”, explica Teles.
Ao longo do tempo eles criaram um modelo próprio de gestão, convidando gerentes para serem sócios minoritários nas lojas que iam sendo abertas. O aumento da autonomia das unidades gerou maior engajamento e agilidade na tomada de decisão, contribuindo enormemente para a longevidade e expansão da rede.
“Gostamos de desenvolver pessoas e, sendo assim, não faz diferença que ela seja da família ou não. Um familiar tem a vantagem de já conhecer a cultura da empresa, mas nada adianta se ele não tiver vontade ou talento. Temos foco em resultados e atuamos pontualmente quando algo se mostra inconsistente ou não chega nas metas esperadas. Acredito que criamos um jeito próprio de trabalhar, evitando repetir receitas prontas de outras empresas”, pontua o presidente da Leitura.
Mas nem todo mundo joga com o tempo a seu favor. A empresária Sílvia Salvador de Oliveira, presidente da Saúde no Lar, se viu obrigada a se tornar executiva com a morte da mãe e fundadora da empresa, Denise Drummond Salvador, aos 62 anos, no fim do ano passado. A empresa, sediada em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), presta serviços de atenção domiciliar há 22 anos.
“Minha mãe adoeceu em 2019 e passou por um processo muito penoso. Mesmo sabendo que a sucessão se aproximava, nem eu, nem meus irmãos nos preparamos para isso. Somos três e eu a única que trabalhava na empresa. Tive que arregaçar as mangas como fiz quando comecei a trabalhar aqui aos 18 anos. Eu era vista como a ‘filha da dona’ e aquilo era muito frustrante. Então fui para o ‘chão de fábrica’, fazer os serviços que ninguém queria, como preencher guia, levar material na casa de algum paciente. Comecei a entender como as coisas funcionavam e pude, finalmente, partir para as melhorias que eu queria implantar a partir dos seus conhecimentos técnicos. Passei a ter reconhecimento e aceitação”, relembra Sílvia Oliveira.
Além da ajuda dos irmãos que compõem uma espécie de “conselho familiar”, a empresária conta com a experiência do seu antigo diretor financeiro, alçado à condição de sócio minoritário durante o processo. A experiência do colega traz segurança para a nova empreendedora.
“Se desde 2019 tivesse tido um planejamento da sucessão, incluindo todos os irmãos, teria sido muito mais fácil, fazendo uma preparação empresarial e também psicológica. Eu não sabia ser dona de empresa, sabia ser gestora. Questões de regulamentação, por exemplo, que eu não lidava, começaram a aparecer. Estou aprendendo com meu novo sócio, a quem preciso agradecer. Torná-lo sócio faz parte dessa gratidão. Não sou uma empreendedora por vocação, isso é uma bênção que me foi dada. Não posso desonrar isso”, pontua.
Grávida de uma menina, Silvia Oliveira já pensa na educação empreendedora que pretende dar à pequena Olívia. “Claro que a decisão será dela, mas quero que ela seja preparada para essa decisão quando for o momento. A preparação de novas lideranças pode determinar o futuro de uma empresa”, completa a presidente da Saúde no Lar.
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