Tragédias em Minas: regularização imobiliária movimenta economia em Mariana e Brumadinho

Quem vê as imagens das regiões devastadas pelos rompimentos das barragens de rejeitos das mineradoras Vale e Samarco há exatos seis meses em Brumadinho, e há mais de três anos em Mariana, tem uma pequena percepção das consequências das tragédias. A lama que homogeniza o espaço antes ocupado por casas, escolas, equipamentos públicos e natureza é, de fato, a maior prova dos desastres humano e ambiental irreparáveis.
Mas, para além desse triste cenário, a tragédia traz muitos “efeitos colaterais”. Um deles é o árduo processo de reassentamento das famílias atingidas, que exige conhecimento técnico sobre regularização fundiária. Em um momento em que quase ninguém sabia o que fazer, a oficial titular do Cartório de Registro de Imóveis de Mariana, Ana Cristina Maia, liderou o processo, apontando para a importância da atuação social dos cartórios.

Além de conhecimento técnico, a oficial tinha “conhecimento de causa”: ela cresceu em Mariana e a notícia do desastre a impactou de forma muito próxima. Quando soube da tragédia ela nem hesitou: acompanhou de perto os atingidos, participou como voluntária em várias frentes, inclusive do coletivo “Um Minuto de Sirene”, que deu voz à comunidade atingida, lembrando que a sirene de alerta não tocou em Mariana. “Eu fiz o que eu achava que tinha que fazer como cidadã”, diz.
Mas foi bem mais que isso: conhecedora dos detalhes técnicos da regularização fundiária, Ana Cristina Maia orientou os advogados da mineradora sobre o processo de reassentamento dos atingidos, ofereceu esclarecimento aos parlamentares na Câmara dos Vereadores quando foi preciso e trabalhou pessoalmente no processo de alteração dos parâmetros urbanísticos do local para que tudo fosse feito dentro da lei, mas com o máximo de celeridade possível.
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“Os cartórios trabalham muito sob demanda, mas essa tragédia ensinou que eles também podem tomar a iniciativa de bons projetos. Os cartórios têm uma função social na comunidade em que estão inseridos e é importante reforçar essa noção de que os titulares dos cartórios podem fazer diferença na vida da comunidade. Eles podem passar sua expertise para a prefeitura, advogados e outros atores”, destaca.
Reassentamentos – De acordo com a Fundação Renova – organização sem fins lucrativos responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem do Fundão – ao todo 402 famílias serão reassentadas em novas áreas que foram escolhidas pelos próprios moradores. Desse total, 365 famílias pertenciam a subdistritos de Mariana: 225 de Bento Rodrigues e 140 de Paracatu de Baixo. As 37 famílias restantes eram de Gesteira, distrito de Barra Longa.
As famílias que perderam suas casas em Paracatu de Baixo optaram por uma área chamada Lucila, que fica a 4 Km do antigo distrito, tem área total de 406 hectares e área urbana (onde serão construídos os bens coletivos e as residências) de 84,8 hectares. Segundo Ana Cristina Maia, esse terreno era ocupado por propriedades privadas, mas boa parte delas estava irregular. A oficial explica que isso é muito comum em regiões rurais, onde as pessoas vão herdando terras de famílias e não registram os bens.
“Muitas tinham pendências em seus contratos de compra e venda, outras precisavam fazer retificação de área, pois já tinha expandido o terreno, e muitos ainda precisavam de inventário”, relata. Ela acompanhou a regularização de cada uma das propriedades para que elas estivessem aptas a serem vendidas para a Fundação Renova.
“Depois disso, ainda foi necessário a conversão de área de rural para urbana, o que só pode ser feito mediante alteração do Plano Diretor do Município”, explica.
Isso aconteceu em outubro de 2018, quando a Prefeitura de Mariana sancionou o Projeto de Lei Complementar nº 65/2018, que permitia a inclusão da área no Plano Diretor. A obra do novo distrito de Paracatu de Baixo começou em dezembro de 2018 três anos após a tragédia.
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Já as 225 famílias que foram atingidas pela barragem do Fundão em Bento Rodrigues escolheram, há três anos, uma área de 398 hectares que era conhecida como Lavoura, mas que foi rebatizada pelos próprios moradores como “Novo Bento”. O terreno, cuja área urbana tem 98 hectares, tem características muito parecidas com Bento Rodrigues e fica a nove quilômetros do subdistrito que foi destruído.
Diferente do terreno de Paracatu de Baixo, que era composto por várias propriedades privadas, a área escolhida pelas famílias de Bento Rodrigues pertencia a apenas um dono, a empresa ArcelorMittal. O problema é que faltava à área rural uma certificação específica do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que impedia a regularização de sua venda.
Diante do impasse, Ana Cristina Maia se propôs a encontrar uma saída junto com os representantes da mineradora, do Ministério Público e do poder público estadual e municipal.
“Tivemos que ser criativos e, observando a legislação, achar uma solução que acelerasse o processo”, relembra.
A solução surgiu em uma audiência pública, onde foi sugerida a desapropriação de parte desse imóvel. A proposta foi uma grande sacada, tendo em vista que a desapropriação levaria à dispensa da certificação do Incra e aceleraria o processo que, se ficasse na mão do proprietário, não teria prazo para acabar.
O advogado Maurício Werckema, do escritório Figueiredo, Werckema e Coimbra Advogados Associados, que atende a Fundação Renova, afirma que a proposta da oficial foi muito importante para destravar o processo. Ele destaca que os incontáveis requisitos registrais não permitiram que a regularização do terreno ocorresse na velocidade ideal.
“Essa conversa com o cartório foi muito importante porque nos permitiu antever problemas. Logo que percebemos que a escritura da terra não poderia ser feita por conta da irregularidade partimos para resolução. Quebramos a cabeça e chegamos num roteiro a ser seguido”, afirma.
Mas, mesmo após esse árduo trabalho, o processo ainda não estava terminado. Isso porque era preciso passar o imóvel para a Fundação Renova, que faria todo o processo de divisão das terras entre as famílias atingidas. Para isso, o município de Mariana precisava doá-lo à instituição, o que dependia de uma lei municipal.
A vereadora Daniely Cristina Souza Alves explica que o projeto de lei para a doação do terreno foi recebido com muita cautela pelos parlamentares por se tratar de um tema técnico e complexo. Por outro lado, ela destacou que a informação de que o processo tinha sido amparado por Ana Cristina Maia deu tranquilidade aos vereadores.
A vereadora, que também atuava como vice-presidente da Comissão de Viação, Obras Públicas, Agricultura, Indústria, Comércio e Meio Ambiente, sugeriu a realização de uma reunião com a presença da oficial e de outros especialistas para que eles explicassem a situação aos vereadores.
“Não é possível que nós, como vereadores, dominemos todos os assuntos e por isso buscamos entender o que não estava claro. Depois disso o projeto foi aprovado com facilidade”, destaca.
E de fato foi: o projeto foi aprovado em 11 de junho, se transformando na Lei 3220/2018. De acordo com a Fundação Renova, o contrato com a empresa que vai realizar as obras no Novo Bento será assinado até fim de agosto. As obras iniciam-se em seguida.
Irregularidade fundiária dificulta indenização
A inexistência de documentação de propriedades nas áreas que foram atingidas pela barragem foi outro drama vivenciado pela população e pelo cartório local. A oficial titular do Cartório de Registro de Imóveis de Mariana, Ana Cristina Maia, explica que ocupação de Bento Rodrigues remonta o início do século 18. Trata-se de terras de famílias, que foram herdadas e repassadas sem nenhum tipo de regularização.
“As pessoas tiveram bastante dificuldade de comprovar que eram proprietários dos imóveis que foram completamente destruídos porque eles estavam irregulares. Para se ter ideia, nem a prefeitura cobrava IPTU por conta disso, então nem esse documento os moradores tinham como prova”, detalha.
A oficial destaca que ainda havia uma segunda situação, que era a dos imóveis que estavam registrados, mas não atualizados. “Foram muitos casos de pessoas que diziam ter 30 a 40 hectares por conta de herança e repasses nos últimos anos, mas a escritura dizia algo como sete hectares”, relata.
No caso dos imóveis que não foram completamente destruídos, ainda foi possível visitar a região e fazer a documentação de retificação de área, o que permitiu que alguns moradores fossem indenizados conforme a situação real de suas propriedades.
A oficial lembra a importância da regularização para a garantia do direito de propriedade, assim como para a comprovação de renda.
“No interior é muito comum as pessoas comprarem o imóvel e guardarem a escritura na gaveta, sem registrar. Mas isso é um risco: elas não conseguirão comprovar posse e ainda perderão a chance de usar esse documento como garantia de dívida, como um financiamento”, frisa.
Construção do Novo Bento
Fevereiro de 2018
• Aprovação do projeto urbanístico pela comunidade de Bento Rodrigues
Abril de 2018
• Definidas as diretrizes municipais para parcelamento do solo no terreno da Lavoura
Maio de 2018
• No dia 7 foi emitida pela Prefeitura de Mariana a licença prévia para a construção do canteiro de obras na área da Lavoura.
• No dia 11 começou a ser instalado o canteiro de obras de Bento Rodrigues
• No dia 30 iniciaram-se as reuniões com os arquitetos para os desenhos das casas e o atendimento das famílias.
Julho de 2018
• Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) emitiu licenciamento ambiental, autorizando a Fundação Renova a iniciar a execução do loteamento do solo urbano.
Agosto de 2018
• No dia 1º, a Secretaria de Estado de Cidades e de Integração Regional (SECIR) emitiu anuência prévia da aprovação do parcelamento do solo. No mesmo dia, a Secretaria Municipal de Obras de Mariana emitiu alvará de construção de Bento Rodrigues.
• No dia 2 começaram as obras de supressão vegetal na área da Lavoura
Setembro de 2018
• Os projetos dos primeiros bens de uso coletivo foram apresentados em Grupo de Trabalho com participação dos atingidos
Novembro de 2018
Conclusão da supressão vegetal do terreno e avanço de terraplenagem
Dezembro de 2018
• Conclusão do canteiro de obras do reassentamento.
Janeiro de 2019
• Início das obras de infraestrutura (drenagem pluvial, rede de alimentação elétrica).
Março de 2019
• Conclusão dos registros dos lotes do reassentamento.
Abril de 2019
• No dia 10 foi assinado o convênio entre a Fundação Renova e a Prefeitura de Mariana para repasse ao município de R$ 7,9 milhões para contratação de mão de obra e equipamentos.
• No dia 29 iniciaram as obras de contenção da escola.
Julho de 2019
• No dia 5 iniciaram as obras de readequação da operação do aterro sanitário
• No dia 10, a Secretaria Municipal de Obras de Mariana concedeu 12 alvarás de casas do reassentamento.
• No dia 11, foram assinados os primeiros termos de opção de reassentamento.
• No dia 20 iniciaram as obras de fundação das edificações.
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