A crise acelerando mudanças

Maurício Antônio Lopes*
Um dos aspectos inusitados da pandemia de Covid-19 é a forma como a crise desacelera o mundo, ao mesmo tempo que acelera mudanças. O distanciamento social – essencial para conter a expansão do vírus e salvar vidas – impulsionou o uso de tecnologias digitais para compras on-line, transferência de obrigações profissionais para o home office e acesso às mais variadas formas de entretenimento.
Uma profusão de eventos on-line cria oportunidades de aprendizado e socialização, e a adoção da telemedicina por muitos prestadores de serviços de saúde já conecta médicos e clientes pela internet, tornando desnecessária a presença física em hospitais e clínicas em algumas situações.
Com milhões de estudantes confinados em casa, por meses a fio, estão surgindo alternativas ao sistema educacional corrente, há muito considerado inadequado à nova realidade tecnológica e aos padrões que emergem nos mercados de trabalho. Muitas escolas recorreram ao ensino on-line, com os alunos se habituando ao aprendizado via computadores e celulares, desafiando instituições e professores a ajustar estruturas, conteúdos e os tempos do processo educacional.
O aprendizado de conectar alunos, professores e escolas virtualmente poderá abrir caminho para uma educação mais sistêmica, que se estenda ao longo de toda a vida, necessária a profissões emergentes que demandarão indivíduos atualizados e continuamente qualificados em múltiplos temas.
Um dos impactos mais marcantes da pandemia ocorre no varejo, com fechamento de shopping centers e lojas, falências, além de redução nos gastos dos consumidores. Embora os varejistas esperem o retorno das pessoas às compras tão logo a pandemia esteja superada, é possível que cresça a fidelidade dos consumidores às compras on-line, para terem acesso a seleções mais diversificadas de produtos, a entrega rápida, a formas mais flexíveis de pagamentos, dentre outras vantagens que o comércio eletrônico pode oferecer.
Marcas e provedores se verão tentados a acelerar processos de vendas diretas ao consumidor ou até mesmo a personalizar e customizar produtos para atender a expectativas e desejos específicos.
Inevitável também será a aceleração de mudanças no sistema alimentar global, que há tempos é pressionado a fortalecer prioridades ambientais, de saúde e bem-estar de consumidores mais conscientes e exigentes.
Como a pandemia deixou muito explícitas as vulnerabilidades dos sistemas alimentares em todo o mundo, espera-se uma elevação de expectativas em relação à confiabilidade e ao desempenho desses sistemas no futuro.
Cadeias transnacionais de comércio com sistemas logísticos complexos e suscetíveis a rupturas precisarão ser remodeladas, e a busca de diversidade e resiliência tenderá a fortalecer a produção local, que ajuda a garantir o abastecimento em situações de crise, além de criar oportunidades para a redução de desigualdades sociais e exclusão – problemas que ganharam grande visibilidade na crise.
Assim como os sistemas de saúde e alimentação estão passando por sério escrutínio, é esperado que o mesmo ocorra com o atual paradigma econômico e com a narrativa de que pandemias são desastres imprevisíveis para os quais ninguém pode se preparar.
Isso porque a economia baseada no consumo sem limites e na tolerância ou até no estímulo a práticas que desgastam o meio ambiente e a saúde das pessoas tem claro impacto na amplificação da crise que vivemos.
A tolerância a modelos de negócios que impedem que as pessoas façam escolhas saudáveis e até estimulam dietas nutricionalmente inadequadas está na raiz de muitas comorbidades que interferem no sistema imune e aumentam o risco associado ao Covid-19.
O fato é que esta crise desnuda fragilidades e torna explícitas as fraquezas da ortodoxia econômica que tolera ou até encoraja práticas e negócios insustentáveis. Se, por exemplo, grande parte da população puder incorporar hábitos mais saudáveis, trocando o carro pelo transporte público, bicicleta ou caminhadas, a economia, no atual formato, sofrerá um baque, pois, se carros não forem vendidos, empréstimos, seguros, reparos, combustível, acessórios, pedágio etc. não serão consumidos.
Outra consequência é que pessoas que se exercitam regulamente se tornarão mais saudáveis, gastando menos com remédios, médicos e hospitais, e produzindo ainda mais baques no modelo econômico atual.
Crises de grande proporção fazem crescer as expectativas pela liderança do Estado, que precisa assumir o papel de garantidor do equilíbrio, da paz e da resiliência necessários para superação do infortúnio.
A economista Laura Carvalho (FEA/USP), em seu recente livro Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado, analisou, de forma objetiva, e à luz do contexto brasileiro e do enfrentamento da pandemia, funções que o Estado precisa cumprir, como estabilizador da economia, investidor em infraestrutura física e social, protetor dos mais vulneráveis, provedor de serviços à população e, por fim, empreendedor que abra caminho para a inovação e a retomada do investimento privado.
A crise está desnudando quais dessas funções são ignoradas, ou pobremente cumpridas, e certamente produzirá pressões por uma agenda econômica que fortaleça a liderança do Estado na produção de valor, de modo a beneficiar toda a sociedade.
*Pesquisador da Embrapa
Ouça a rádio de Minas