A revolução do altruísmo

O cientista Matthieu Ricard tem uma habilidade singular: legitimar o espiritual e a felicidade como valores tangíveis, inspirando bons hábitos. É o que ele faz na reveladora obra que dá nome a este artigo. Ph.D em genética celular pelo renomado Instituto Pasteur, sob a orientação de um Nobel da Medicina, moldou sua mente em absoluto rigor científico. Contudo, aliou uma promissora carreira para aprimorar-se em práticas meditativas na Ásia e ligar ciência e espiritualidade. Esse breve relato talvez remonte à ideia de se aproximar monges de executivos, não pendesse Ricard para a gratuidade, sem o desejo de acumular dinheiro ou fama propondo às gestões as alegorias espirituais da autoajuda.
Ao contrário: levou a estruturação tecnológica e científica para melhor gerir e difundir conhecimentos espirituais ancestrais das montanhas. Com isso, ajudou a tornar o Himalaia, por assim dizer, mais pragmático. Ricard fala de ‘revolução’, sem encrespar uma marola sequer de movimentos a favor ou contra qualquer coisa. Tampouco prega a passividade da ‘não-violência’. É pelo pragmatismo que ele convence de que está tudo errado nesse reinado de individualismo, ganância e ódio que vivemos. E que o espiritual, sem misticismos, é “o” caminho. Mas, o otimismo desse livro não é ingênuo, com a resignação sugerindo esperar de onde já não vem. Há forte parcela de realismo crítico, dosado com a perspectiva positiva de que tudo ficará bem se a lógica da natureza for respeitada. Simples assim.
E prova que nascemos para ser bons e mais distributivos, com técnicas que ajudam na evolução a esse respeito. Ele próprio submeteu-se a um escaneamento cerebral por horas a fio nos EUA, sob a supervisão de Daniel Goleman (o cara da Inteligência Emocional), para comprovar que os vários tipos de meditação propostos geram atividades neuronais em diferentes partes do cérebro, aumentando as chances de se alcançar estados de plenitude. Tudo que os negócios precisam em tempo de demandas por “cérebros disruptivos”, upgrade de ‘mindsets’ e criatividade promovendo inovação a parto de fórceps! O que se conclui, é que ondas mentais de intenções fraternais impactam positivamente a realidade (e a inventividade na prática), porque o pensamento não é imaterial.
Outra curiosa constatação, esta sim inédita e revolucionária, pode ser tomada emprestada pela moderna gestão ao convergir décadas de pesquisas científicas em neurociência, psicologia, economia e biologia: a comprovação de que todos, sem exceção, têm compaixão e amor altruísta em expansão. Só precisa cultivar. Segundo o Nobel de Economia, Angus Deaton, em entrevista à “revista Veja”, hoje existe uma preocupação geral de tornar o mundo um lugar melhor. Há uma força coletiva que empurra o mundo nesta direção. E vem obrigando as corporações a colocarem os valores e a integridade no centro da cultura organizacional.
Ricard converge com Deaton quando observa o avançar do altruísmo no planeta, porque o desconforto atual evoca um pensar conjunto sobre a solução para o impasse da policrise instalada. Outro ponto importante de seus escritos é que todos nós possuímos ‘senso de responsabilidade e generosidade’ para com os seres vivos. Ou seja, nossa natureza é cooperativa. A começar por nossa conformação cerebral, onde dois hemisférios interagem para o bem de uma unidade mantida pela interdependência. Somos uma rede por excelência e “tudo o que é sustentável tem o padrão de rede”, para lembrar aqui o ilustre brasileiro Augusto de Franco. Embora seja natural, é preciso exercitar essa consciência (da cooperação e da ‘rede’), aparando eventuais arestas. Segundo o autor, meditar facilitaria isso, podendo melhorar comportamentos, turbinar a mente e aprimorar o clima em instituições, cidades, países, favorecendo o senso de unidade e a sustentabilidade.
Apesar de muitas provas em contrário atualmente, Ricard nos leva a concluir que o mundo tornar-se-á melhor na medida da reorientação do foco predominante para o bem-estar coletivo. Consciência de que algo só é realmente bom quando for bom para todos – que é a utopia da dimensão espiritual. “A revolução do altruísmo” (editora Palas Athena) é uma rica pesquisa, com 715 surpreendentes páginas e pode ser a alternativa da espiritualidade ser chancelada pela ciência, ganhando de vez a confiança da economia e da gestão. Falando em Himalaia, o autor acredita que ainda há chance do mundo esquivar-se do penhasco para onde caminha. Que ele esteja certo!
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