Opinião

A vida por escrito

A vida por escrito
MARCELO CAMARGO / AGÊNCIA BRASIL

Tenho lido bastante os autores brasileiros que resolveram registrar, por escrito, o seu cotidiano, às vezes nos seus mínimos lances. Um de meus favoritos é Humberto de Campos, notável maranhense, que assinou vasta obra, em que se incluem seus deliciosos diários. Em 31 de dezembro de 1930, ele escreveu:

“Meia noite. Estouram os primeiros foguetes saudando o ano que vem. Por diante da minha casa os automóveis em disparada buzinam e estrondam, carregando passageiros alegres, rumo dos clubes em que a gente se diverte. Eu, entretanto, amarrado a esta mesa, que é meu pelourinho e minha recompensa, medito sobre as surpresas do meu destino…

A noite está quente, com a metade da lua no céu. A outra metade fragmentou-se em estrelas…”

 Também recorro comumente a Josué Montelo e a Lúcio Cardoso, sabendo que ainda há outros nomes de alta qualidade que devem ser buscados, não só no país. O ‘diálogo’ com os mestres é inspirador e dá a vitalidade de que tanto é possível beneficiar-se. Distinta do memorialismo, embora próxima a ele, a chamada ‘diarística’ (praticada pelos três grandes literatos acima mencionados) é a escrita ‘a quente’, no calor dos acontecimentos, sem a serenidade que a passagem do tempo talvez proveja. A alta temperatura é, seguramente, uma de suas melhores características. É como se o narrador fosse personagem de um romance que ele não sabe, de modo algum, como vai se desenvolver, e, muito menos, como vai terminar – como a vida da gente, esse mistério permanente, insondável, que tanto pode fascinar quanto agoniar.

 Na noite escura que vislumbro da janela da sala, a chuva cai torrencialmente, como nos vários janeiros que Belo Horizonte viveu, ao longo de sua história, muitas vezes com trágicas consequências. É de Afonso Arinos de Melo Franco o excerto abaixo, retirado de suas memórias de infância (aqui, sobre o mês de março):

“Eu gostava da chuva. Da varanda da frente podia vê-la vir vindo, ora desmanchada pelo vento, ora marchando em cortina cerrada de fios, descendo a encosta do Pico até o fundo do vale, e avançando na subida pelas ruas Bernardo Guimarães e Gonçalves Dias, em direção a nós.

 Os raios estalavam, as bátegas corriam nervosas como chicotadas sobre as frondes: subia um cheiro vegetal de terra molhada: a água tamborilava nas telhas, nos zincos, e, breve, com espantosa rapidez, começavam a formar-se as ‘enxurradas’”.

 Há meia hora, ninando Gabriela, sugeri a ela: ‘Vamos fazer silêncio para ouvir o barulhinho da chuva. É uma delicia”. Ela aceitou a ideia, animada e agradecida pelo convite: “Hoje é meu dia de sorte”. Se não houvesse passado para o papel esse delicado diálogo, ele teria seguramente se perdido no tempo, caindo no esquecimento que a soma dos dias impõe a todos nós. Uma das dádivas da literatura, a preservação da memória gera certo conforto existencial. E psíquico. Por meio dela, é possível produzir o sentido tão necessário para seguir adiante, mesmo em meio ao mais absoluto caos que ora nos coube atravessar.

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