“Aborto no país dos fariseus”

Nair Costa Muls*
Estarrecida, tristíssima, horrorizada, tomo a liberdade de trazer para estas páginas ─ inclusive utilizando-me de um título de um texto de um médico, recebido pelo celular ─ um assunto que, normalmente, não lhes cabe…
Infelizmente, é um assunto muito, muito comum nessas paragens brasileiras, estruturalmente marcada pelo machismo e por um patriarcalismo exacerbado, embora cada um de nós faça como se não fosse com ele… E as atrocidades continuam! Quase que sob nossos narizes… E temos muita sorte, mas muita sorte mesmo, quando não acontece nos nossos círculos familiares…
Trata-se de mais um caso de estupro, de uma meninazinha que durante seis anos se viu vítima de um tio, e, sempre ameaçada, não teve condições de contar para ninguém o sofrimento no qual estava mergulhada; aos dez anos se viu grávida. Apesar de tudo, teve um lampejo de sabedoria e não quis aceitar a gravidez.
Lutou de unhas e dentes, sofreu mais ainda ao se expor contando seu caso às autoridades (macabras e desumanas, que num primeiro momento negaram a autorização necessária para o aborto) e não foi aceita no primeiro hospital ao qual chegou, por os médicos acreditarem que, no caso, não se podia fazer um aborto. Ao invés de ser resguardada pelas autoridades, que lhe deviam um sigilo absoluto, teve que se esconder no porta-malas de um carro para conseguir entrar num hospital, muito especial, o Cisam, em Recife, dirigido pelo médico Olímpio Morais, defensor do direito ao aborto em caso de perigo de vida da gestante ou de gravidez decorrente de estupro. Não vou repetir a história, porque todos já sabem e é triste demais.
Mas gostaria de chamar a atenção para trechos de uma carta excepcional assinada pelo médico. Newton Lemos, obstetra há mais de 30 anos. E espero que a maioria dos médicos e nós, simples cidadãos, em nossos corações e em nossas mentes, estejamos plenamente de acordo com a sua posição.
Os pontos centrais de sua fala são: um compromisso inabalável com a vida, e nenhum compromisso ético ou profissional com atos de estupro. A razão de ser do ato sexual é seu livre exercício entre pessoas capazes de compreendê-lo. Assim, no art. 217-A, do CP, fica tipificado que relação sexual com menor de 14 anos é estupro de vulnerável e leva a uma pena de 8 a 15 anos de reclusão; e o artigo 128 não pune o aborto realizado pelo médico, se não há outra forma de salvar a vida da gestante ou se a gravidez é decorrente de estupro. Jogar a culpa numa menina que sofreu violência dos 6 aos 10 anos é a expressão suprema do machismo e do patriarcalismo vigente no Brasil, da falta de misericórdia e de empatia pela dor alheia, mais ainda quando se usa o nome de Deus… (em vão).
Nesse contexto, é oportuno ainda lembrar que, segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, acontecem 180 estupros por dia no Brasil, sendo que 54% desses têm como vítimas meninas de até 13 anos. Os responsáveis? Pasmem: pais, avós, tios, padrastos ou amigo íntimo da família. Ameaçadas, não têm coragem de contar a ninguém o sofrimento em que vivem. Algumas se engravidam, com sérios riscos de complicações, pois meninas não estão preparadas para ser mães; nem fisiologicamente nem psicologicamente.
Diante desse quadro, resta-nos assumir nossas responsabilidades, quaisquer que seja o lugar que ocupemos na sociedade, e lutar pelas mudanças inadiáveis que se tornam necessárias e são urgentes, apoiar os movimentos feministas do Recife, o manifesto da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e se congratular com o Hospital Cisam, seu diretor e sua equipe médica na continuidade do apoio à pequena vítima, e lutar sempre contra todo tipo de violência contra a mulher e contra a tortura física e moral contra nossas crianças.
*Doutora em Sociologia, professora aposentada da UFMGT/Fafich
Ouça a rádio de Minas