Opinião

Arqueofeminismo: luta antiga

NAIR COSTA MULS *

As comemorações e debates sobre a questão feminina registradas no mês de março ─ mês das mulheres ─, possibilitaram importantes discussões. Entre elas um debate ocorrido dentro da programação da Festa da Francofonia, realizada em Belo Horizonte há alguns dias.

O título da conferência do filósofo francês Maxime Rovere, professor da PUC/RJ, já é bastante significativo: “Arqueofeminismo: mulheres filósofas e filósofos feministas na França, séculos XVII e XVIII” – título de livro organizado por Rovere e lançado no evento (N-1 edições, 2019).

Na sua fala, Rovere buscou repensar o lugar e a contribuição das mulheres no campo filosófico e criticou a ideia – tão repetidamente afirmada – que a tradição filosófica, mais ainda que outros campos das artes e da cultura é uma discussão da qual participam apenas nomes masculinos (Sócrates, Platão, Aristóteles, Averróis, Tomas de Aquino, Descartes, Rousseau, Kant e tantos outros).

Rovere ressalta que, mesmo na Antiguidade, houve mulheres que marcaram sua época com pensamentos e escritos: na Grécia (Fíntis, Temista, Hipátia); no mundo cristão (Hildegarda de Bingen (1098-1179), Catarina de Siena (1347-1380); no mundo islâmico, Fátima de Córdoba (sec. XII).

Na França, entre os séculos XII e XVI, a” polêmica das mulheres”, que questionava o acesso desigual ao saber, levantou perguntas fundamentais: a natureza das mulheres, o lugar delas na comunidade, o acesso à educação e à condição jurídica das mulheres (quais os seus direitos?).

Essas discussões, esparsas ainda, levaram ao arqueofeminismo dos séculos XVII e XVIII, marcado pelos posicionamentos de filósofas e filósofos, que questionaram convicções quase inabaláveis sobre o lugar e o destino das mulheres.

Marie de Gournay e Olympe de Courges (essa, decapitada pelos montanheses da Revolução Francesa pela ousadia de defender o direito da mulher em também legislar), ao lado de filósofos como Poulain de la Barre, Choderlos de Laclos, Condorcet, defenderam a emancipação das mulheres e a igualdade entre os dois sexos, pois, enquanto seres humanos e portanto como seres pensantes, ambos são capazes de criar em quaisquer dos planos da cultura e ambos são sujeitos de direitos. Com seus argumentos e conceitos a favor dessa tese, Montaigne, Descartes e Spinosa são pano de fundo dessas discussões.

O debate foi enriquecido por uma colocação importante feita pela também filósofa Telma Birchal, professora da UFMG, que lembrou que apesar de hoje ser lugar comum a defesa da igualdade entre o H e a M, persiste, de forma sub-reptícia, a ideia de que o homem é fruto da cultura e a mulher, fruto da natureza.

Nesse contexto, a mulher é vista como “naturalmente” incapacitada para a maior parte das tarefas e reduzida “ao lar”… A igualdade das mulheres, na perspectiva de Gournay, supõe que estas sejam reconhecidas também como um ser de cultura, ou seja, como um ser de múltiplas e abertas possibilidades – integrando assim plenamente a humanidade.

Ainda hoje, porém, possuir um útero condena a mulher a não sair da natureza, estando por isso incapacitada para a arte, para a filosofia, para os negócios… Telma Birchal assinalou também que a defesa da igualdade não exclui reconhecer características e especificidades das mulheres (tais como a gravidez, o aleitamento, o desejo e a sexualidade feminina) e problemas próprios a elas (o aborto, o medo de estupro).

E perguntou por que é tão difícil, ainda hoje, apesar de todos os avanços, explicitar e trazer à luz essas diferentes realidades ─ Igualdade, liberdade, potencialidades, direitos iguais sim; mas também reconhecimento das especificidades.

De todo modo, pouco a pouco, a literatura, o cinema e outras esferas da cultura – em espaços ainda restritos – estão levando para o mundo público aquilo que por séculos fora condenado ao silêncio ou aos murmúrios do mundo privado.

Todavia, a grande questão é: por que as mulheres estão ainda no lugar que estão? Nem todas assumem os seus direitos e nem todas são capazes de falar sobre as especificidades do feminino.

A questão política, a aceitação dos preconceitos, muitas vezes assimilados pelas mulheres também, dificultam essa libertação total e, no que diz respeito à mulher, a assumir o seu lugar, o seu papel e as suas especificidades. Diria mais, a estrutura socioeconômica das nossas sociedades ainda dificulta uma tomada de consciência plena, pelas mulheres e pelos homens.

O machismo ainda predomina e leva, inclusive, à subserviência das mulheres, desqualificadas, desrespeitadas e agredidas sob todas as formas possíveis.

Há ainda muita coisa a fazer, assegura Rovere. A história da literatura, das artes, da ciência do Ocidente deve ainda ser completada pelas novas gerações de pensadores, femininos e masculinos, seguindo o exemplo das grandes figuras que, através dos séculos, marcaram e avançaram na discussão sobre o lugar e o papel da mulher no mundo, mostrando que a historia não se constrói sem a participação efetiva e inteligente das mulheres, seres capazes de pensar e de criar, e mais, com a sensibilidade, a ternura, a doçura, a suavidade, a capacidade de empatia, ou seja, com os sentimentos que são mais próprios das mulheres …

*Doutora em Sociologia, professora aposentada da UFMG/Fafich

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