A competência da Justiça do Trabalho e as novas relações de trabalho

A competência da Justiça do Trabalho sempre foi um tema controvertido, sendo moldada ao longo do tempo, conforme a necessidade social e legal. O tema voltou a ser destaque no mundo jurídico ante as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal – STF sobre a competência para julgar demandas que versam sobre pedido de vínculo de emprego nos mais diversos contextos.
No caso da Justiça do Trabalho, sua competência é determinada pela natureza jurídica da controvérsia, que deve decorrer necessariamente de uma relação de trabalho. Tal conceito foi trazido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que alterou o artigo 114 da Constituição Federal, e ampliou a competência da Justiça do Trabalho, especialmente porque o principal critério passou a ser o direito decorrente da relação de trabalho havida.
Nesse contexto, a relação de trabalho se mostra como gênero, do qual a relação de emprego é espécie. Assim, por meio dos conceitos em comento, a competência da Justiça do Trabalho abrangeria todas as relações de trabalho, e não apenas aquelas relações de emprego tratadas pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
No entanto, recentemente, o STF decidiu ser da Justiça Comum a competência para julgar algumas ações que versavam sobre pedido de vínculo de emprego em relações de trabalho, como, por exemplo, ação ajuizada por servidor celetista contra o poder público, ex-jornalista e emissora de televisão, contratos de representação comercial autônoma, transporte autônomo de cargas, dentre outros.
Assim, a discussão atual gira em torno da alegação de que o STF estaria esvaziando a competência constitucional da Justiça do Trabalho por entender que as demandas envolvendo relações de trabalho devem ser processadas e julgadas pela Justiça Comum, em suposta contramão ao artigo 114, inciso I da Constituição Federal.
Em que pese o posicionamento no sentido da inconstitucionalidade das decisões proferidas pelo STF, importante avaliarmos alguns pontos de extrema relevância para a análise lato sensu de referidas decisões.
A Justiça do Trabalho foi criada com o viés social de proteção do trabalhador hipossuficiente, com o propósito fundamental de nivelar desigualdades. No entanto, necessário o acompanhamento da evolução social, e a constante avaliação de quais preceitos permanecem inalterados e quais se tornaram obsoletos.
Nesse contexto, a sociedade reagiu à pandemia do Covid-19 de várias formas, dentre elas, com a necessidade de se conciliar vida profissional e vida pessoal por meio de autogestão. A legislação e a jurisprudência não conseguiram acompanhar as demandas sociais que emergiram a partir daí.
O home office, o now here office, e a intensificação da utilização da jornada por tempo parcial, são exemplos da flexibilização reivindicada pela sociedade e atendida pelo legislador dentro do cenário da relação de emprego, regida pela CLT. No entanto, urge a necessidade de discussão sobre a flexibilização do princípio da proteção e avaliação da autogestão fora do cenário celetista.
Com a evolução da sociedade, o dinamismo das relações e o surgimento de novas formas de trabalho, necessária a reavaliação de todo o contexto trabalhista e principalmente do princípio da proteção, e sua aplicabilidade dentro do novo cenário social que se apresenta. Não se mostra razoável a utilização de princípios protecionistas para trabalhadores hipossuficientes, trabalhadores que perseguem a autogestão, e têm reinventado as formas de trabalho.
O objeto de discussão não deve ser eventual mudança da competência da Justiça do Trabalho, mas sim o correto enquadramento das novas relações de trabalho. Para que o enquadramento dessas relações seja realizado sem qualquer vício, necessária a realização de uma releitura da Justiça do Trabalho, das novas formas de trabalho, da real aplicabilidade dos princípios trabalhistas ao novo cenário apresentado.
Nesse sentido se deu o voto do relator da ADPF 324, ministro Roberto Barroso: “Efetivamente, a Constituição de 1988 acolhe a livre iniciativa como fundamento da República. Nada obstante, impossibilitar que a Justiça Trabalhista fiscalize e censure práticas decorrentes da intermediação perniciosa de mão de obra, tais como a ‘pejotização’, a existência dos ‘gatos’ a aliciar trabalhadores conhecidos como boias-frias para a colheita em diversas plantações agrícolas, ou seja, asseverar que a Justiça Especializada não poderá impedir a ocorrência de fraudes nos contratos de trabalho, não se coaduna com a estruturação constitucional das relações de emprego”.
Apenas com o avanço legislativo e acompanhamento do desenvolvimento social é que se conseguirá garantir o papel institucional principal da Justiça do Trabalho, qual seja, a pacificação dos conflitos sociais. O que se observa atualmente é uma enxurrada de demandas, ante a insegurança jurídica apresentada, o que sobrecarrega o Judiciário e tira o foco de suas finalidades principais.
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