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Dia da Consciência Negra: sociedade consciente ou obtusa?

Teve uma época em que a gente achava que esse lugar de fala era apenas para as pessoas minorizadas. Mas todos temos lugar de fala.
Dia da Consciência Negra: sociedade consciente ou obtusa?
Foto: Reprodução Freepik

Abro essa coluna nessa data tão relevante para o contexto nacional, e já trago como provocação a necessidade de olharmos para dentro de nós enquanto País, e assumirmos quem de fato somos: segundo a pesquisa PNAD Contínua de 2024, 56,7% da população brasileira se autodeclara preta ou parda. Somos
um país negro.

É importante que esse olhar seja lançado para além dos movimentos organizacionais, que se esforçam para dar sua contribuição de transformação social. Aqui, vamos um pouco mais fundo. E para isso, teremos que fazer um resgate histórico dos negros no Brasil, para entendermos como chegamos até
aqui; e pensando de uma forma propositiva, como evoluímos de forma mais assertiva considerando o que queremos para o futuro. E esse resgate será feito em temáticas específicas.

Educação

Você já parou para dar uma rápida olhada nos livros de História de Brasil de seus filhos? Em quais deles você vê a história do Brasil fielmente retratada? Apesar de existir uma lei (a Lei 10.639/2023) que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira em todo o currículo escolar, na prática, o compartilhar
dessa história tem sido muito limitado, e isso se dá por vários motivos:

  • Simples descumprimento de algumas escolas municipais (e isso num
  • contexto nacional);
  • A falta de formação adequada dos professores para apresentação do
  • tema;
  • O ensino fica circunscrito a datas específicas como o dia de hoje, por
  • exemplo, o que torna a compreensão limitada e superficial.

Para compensar essa limitação, vemos movimentos sociais e especialistas no tema sendo vocais na preservação de nossa história, o que inclui o período da escravidão, para que tudo seja abordado de forma digna e profunda, como a pauta merece. Mas isso, por mais adequado e necessário que seja, não
substitui a relevância de os alunos receberem essas informações direto na sala de aula. Interfere na sua formação como cidadãos conscientes de sua origem e da nossa configuração enquanto sociedade.

Saúde

Neste item, faço um recorte de gênero, já que os cuidados para com a mulher negra sempre traduziram o extremo de desigualdades social, racial e de gênero aqui no Brasil. “Saúde da mulher negra é negligenciada no Brasil por herança escravocrata”. Esse é o título de um podcast recém-publicado pelo Repórter SUS, em julho deste ano.

Diversos relatórios de saúde pública, se analisados para além dos dados compilados, vão demonstrar que a saúde da mulher negra é marcada por uma profunda desigualdade, consequência do racismo estrutural. A história, tanto a mais antiga quanto a mais recente, relata violência, os piores índices de
doenças crônicas, violência obstétrica, o não uso de anestésico, por uma falsa crença de que “preto aguenta dor”, diagnósticos malfeitos, e tratamentos restritos… tudo isso como a clara tradução de que a abolição, em não tendo sido acompanhada de um suporte social, incrementou a marginalização e a
vulnerabilidade econômica, o que gera impacto também na saúde.

Relacionamentos e hipersexualização

O amor e o afeto sempre estiveram associados às pessoas brancas. É só olhar os filmes, as novelas, as revistas, os livros; e a não ser que seja uma obra de época, o que vemos é um esforço de colocar o branco como padrão, e o negro na condição de objeto, e isso, inclusive em relacionamentos.

Isso é o que chamamos de objetificação, e junto com ela vem a hipersexualização, em que os negros são vistos essencialmente como corpos disponíveis ao prazer do outro, ao invés de indivíduos completos, disponíveis para uma relação mútua, para relacionamentos saudáveis onde a reciprocidade esteja posta.

Você provavelmente já ouviu expressões como “mulata tipo exportação, ou “negão gato”, termos pejorativos e grosseiros, que não apenas objetificam essas pessoas, mas abrem caminho para relacionamentos abusivos e violentos, restringindo a visão de indivíduos completos.

No final das contas, a constatação é simples: a negação de afeto; o preterimento em relacionamentos; o reforço do padrão eurocêntrico; relações tóxicas, e em alguma medida, perversas.

Meio pesado, né?! Pois é…

A reflexão que quero fazer aqui é para entendermos de forma coletiva que o que experimentamos hoje enquanto sociedade, os problemas, os conflitos, os dissensos, a desigualdade, não surgiram hoje, mas têm origem na época de construção do nosso país. Ao não entender e assumir o nosso processo de
construção, a sociedade vai sempre nos colocar nessa dualidade cansativa de “nós x “eles”.
Por fim, quero deixar uma reflexão sobre lugares.

A gente ouve muito falar sobre “lugar de fala”. E teve uma época em que a gente achava que esse lugar de fala era apenas para as pessoas minorizadas.

Mas a grande verdade é que todos nós temos lugar de fala. Você tem lugar de fala na discussão racial no Brasil, mesmo sendo branco. Esse lugar fala essencialmente sobre perspectiva, sobre ângulo, sobre o que você vê de onde você está, e como isso te afeta.

Você provavelmente conhece pelo menos uma pessoa negra. Então, neste lugar em que você está, você tem lugar de fala. O que significa dizer que você tem condições de se posicionar, de ajudar, de defender, de esclarece. Qualquer coisa diferente disso é omissão.

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