Artigo

‘Mata-se a mulher por ser mulher’

Uma análise sobre a violência de gênero e o fracasso civilizatório que ela expõe
‘Mata-se a mulher por ser mulher’
Foto: Adobe Stock

Essa frase, dita pela ministra do STF Cármen Lúcia, é parte de um discurso em que ela, de forma contundente, se manifesta acerca dos casos de feminicídio que atormentam nosso País há décadas e que ganharam destaque na última semana. Um verdadeiro soco no estômago.

Eu fiquei sem reação ao ouvir o caso de uma jovem que foi atropelada e arrastada por mais de um quilômetro embaixo de um carro, o que resultou na amputação de suas duas pernas. O que ela fez para que isso acontecesse? Nada. Um ex-ficante, enciumado por vê-la acompanhada de outro homem, atentou de forma violenta contra sua vida.

Um outro caso aconteceu aqui em Belo Horizonte: uma mulher de classe alta, divorciada, independente, foi violentada e morta pelo namorado.

E, assim como esses, vários outros casos acontecem em milhares de casas em nosso País, o que confirma que não é uma questão familiar ou de classe social, e sim estrutural, ou seja, faz parte da nossa formação enquanto sociedade e grupo coletivo.

As ciências sociais conseguem dar nome a isso: violência de gênero, que tem como causa principal a histórica e desigual relação de poder entre homens e mulheres. Nesse contexto de desigualdade, temos visto discriminação, dominação e o extremo, que é a sujeição, a visão de que o corpo da mulher é propriedade do homem, dando a ele, inclusive, o direito sobre sua existência.

Existem fatores que explicam esse flagelo na sociedade atual. Quero deixar claro, porém, que explicar não é para justificar ou dar permissão, e, sim, para nos ajudar a entender porque estamos nesse caos, e juntos pensarmos em como mudar isso.

Posso elencar aqui, de forma, resumida três fatores: 1) estruturais e culturais, em que se estabelece uma hierarquia social entre homens e mulheres, oferecendo a eles poderes e privilégios sobre nós mulheres, e isso surge muito como consequência do machismo estrutural, elemento central na construção de nossa sociedade, reforçado por algumas crenças e pela impunidade latente;

2) relacionais, em que a violência surge em um contexto de relação íntima, ou seja, ela é cometida por um parceiro (atual ou anterior) ou um conhecido, alguém com quem a mulher tem algum tipo de relação;

3) fatores individuais, em que a vivência de violência doméstica, muitas vezes combinada ao uso de álcool ou de substâncias abusivas, normaliza a violência dentro das casas. Nesse caso, o agressor tenta convencer a mulher de que a dominação e a sujeição a que ele tenta submetê-la é algo normal, limitando de forma substancial sua capacidade de reação, normalizando aquele ato, por atribuir uma certa irrelevância ao fato (algo do tipo “isso acontece com todo mundo”).

Tem um outro fator, que não sei em qual das três categorias anteriores se enquadra, talvez por ser um pouco de cada um, que é a invisibilidade coletiva derivada da interseccionalidade. As estatísticas confirmam que a grande maioria das vítimas de violência de gênero são mulheres pretas e pobres, em uma clara constatação de que a desigualdade social e racional perpetua comportamentos nocivos, e coletivamente não reagimos porque existe a tendência de pormenorizar o que está relacionado aos públicos minorizados.

Eu testemunhei violência doméstica na minha infância. No início de minha juventude eu fui violentada por um namorado e demorei a entender que, apesar do caráter íntimo da relação, aquilo não estava correto.

Por isso, é muito importante que a gente consiga dar nome às coisas que temos vivenciado: a violência de gênero, apesar de, na maioria das vezes, se manifestar nas casas de portas fechadas é um problema social, ou seja, ela é um problema coletivo. Por isso, o encaminhamento das ações corretivas passa por esse ajuste de leitura, para ajustarmos a cultura e, assim, conseguirmos promover a mobilização coletiva necessária para mudar esse quadro.

A lei Maria da Penha (11.340/2006), uma lei federal, cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher. Apesar de sua relevância e de ser um marco na promoção dos direitos humanos das mulheres em nosso País, ela ainda não é suficiente para reverter esse comportamento. Quantos não foram os casos em que ela só foi aplicada depois de manifestada de forma pública a violência?

Por isso vejo como absolutamente crucial, na iminência de um processo eleitoral, que escolhamos representantes públicos que combatam esses abusos, e não os estimulem; o apoio a influenciadores ou atores públicos que sejam vocais no combate a esse tipo de violência; na observação nítida de como as escolas têm formado nossas crianças, ou seja, combatendo a violência e não a estimulando. Nem de brincadeira.

Mais do que uma questão de violência pública, de gênero e de direitos humanos, a violência de gênero, mesmo nos casos em que ela não chega ao seu extremo, o feminicídio, é uma falha civilizatória. E, como bem disse a ministra, “uma sociedade que compactua com isso, não chegou à etapa civilizatória”.

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