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Piracema: o corpo em movimento

Minha intuição, assentada no reino do desejo, da fantasia, da vontade, é considerar que essa Piracema escreve e sinaliza inédita série de espetáculos
Piracema: o corpo em movimento
Foto: José Luis Pederneiras/Grupo Corpo

“É próprio da Arte em geral tornar-se acolhedora dos achados fortuitos. Tirar partido dos materiais
é, ao mesmo tempo, deixar viver seus acidentes (nós da madeira, particularidade pessoal de um ator,
tremor inopinado de um traço) e transmutar esses dados contingentes em uma necessidade nova. É
próprio da Arte de viver lidar com o acontecimento; em outras palavras, com o imponderável e o
imprevisível.” (Jean Galard, A Beleza do Gesto, 1984)”

José Saramago (1922-2010), escritor contemporâneo nascido em Azinhaga, Portugal, prêmio Nobel de Literatura em 1998, afirma que “Não existe uma Língua Portuguesa, mas línguas em Português.” Manter e preservar a Língua, acolhendo todas as representações e signos que a constroem de forma sistemática, é elaboração continuada a partir de inúmeras fontes. Para nos encontrarmos nela demanda recuar no tempo e caminhar atento desde o período Préromânico, Românico, Galego Português, Português Arcaico e Português Moderno.

E seguir adiante nas veredas dos Movimentos do Trovadorismo, Humanismo, Classicismo, Quinhentismo, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Pré-modernismo, Modernismo, Pós-modernismo. Na obra de Cezar Xavier, “Arcaísmo na Língua Portuguesa: Do Culto ao Caipirismo”, encontrei de forma organizada o vocábulo Caipirismo para nomear o Movimento que acolhe outros modos do falar, que são também abraçados pela Língua Portuguesa, Brasileira.

O idioma Tupi tem origem nas populações indígenas e deriva da família linguística do TupiGuarani, falado pelos povos Tupinambás, habitantes do litoral que ocuparam desde o Pará até São Paulo, e a região norte de Santa Catarina. Também é encontrado no Paraguai, Bolívia, Argentina, Peru e Guianas. Podemos classificá-lo na categoria de dialeto. Piracema é substantivo feminino que tem origem no Tupi-Guarani: pirá, significa peixe, e cema, subida.

Durante a arribação de peixes em grandes cardumes para a desova, algumas espécies nadam contra a correnteza, enfrentando muitos obstáculos, até alcançar local apropriado onde depositar e confiar sementes para fazer brotar outras gerações. É fenômeno natural que metaforiza, na dimensão humana, o eterno retorno ao ponto de partida para a inata renovação e perpetuação da vida, celebrando o culto às origens.

Foto: José Luis Pederneiras/Grupo Corpo

Na Língua Portuguesa, Brasileira, são inúmeras as palavras absorvidas do vocabulário praticado pelos habitantes originários dessa Terra de Santa Cruz, que a ela se incorporaram e a enriquecem: piracema, jiboia, tatu, piranha, abacaxi, mandioca, ipê, itaipú, ipanema, pindamonhangaba, igarapé, itá, pindoba, jaguara, arara, tucupi, paramirim, paraguaçu.

Foi com esse olhar, no ambiente de ontem à noite, depois de baixadas as cortinas do grande palco, que aos poucos despertei da imersão trazida do Palácio das Artes onde o Grupo Corpo me trouxe à memória a presença do saudoso amigo Octávio Elísio, cultor de todas as expressões das artes. Sintetizava ele, numa frase sempre repetida, a admiração diante das obras que o surpreendiam, acrescentando aos aplausos que “A beleza tem sentido se puder ser compartilhada.”

Meu primeiro contato com o Grupo Corpo ocorreu em 1980, quando assisti ao O Último Trem, segundo espetáculo da vindoura longa série que eclodiu em 1979 com Maria, Maria. Depois, estive presente em muitos outros, alguns por mais de uma vez. Em 2019, em New York, numa semana o mesmo espetáculo, Bach e Gira, por duas vezes. Na Alemanha, por conta de bom acaso, Dança Sinfônica e Gira nas cidades de Aschaffenburg e Ludwigsburg.

Piracema traz um ponto de inflexão que não consegui definir bem: algo de onde fluem sutis nuances de mensagens a driblar a expectativa do óbvio, “… um domínio incomum de múltiplas linguagens e técnicas… cheio de esperanças ou ilusões, de sonhos ou de alarmes, que nos devolve, em círculo, aos sons da natureza… termina ou renasce, não numa explosão, mas num suspiro.”, registra José Miguel Wisnik, intrigando quem tenta e ousa racionalizar o que é belo.

O que a dança escreve, instrumentalizada pelos movimentos do corpo, pertence ao universo das sensações capturadas na poesia que tudo anima, e não se explica. Se houver explicações, não é poesia.

Minha intuição, assentada no reino do desejo, da fantasia, da vontade, é considerar que essa Piracema escreve e sinaliza inédita série de espetáculos, na desova de cujas sementes eclodirão outras frases, parágrafos em movimento, que nos encantarão nos próximos cinquenta anos. Na percepção de Luciana Medeiros, “… jornada, um esforço rio acima, navegando entre forças opostas e complementares… sendo ao mesmo tempo peixe e rio; começo, caminho, chegada e recomeço.

Piracema em movimento é escrita nova, dialeto inédito no universo das sensações. Não se conforma nem se basta na dimensão e plenitude da poesia, do falar por meio dos deslocamentos corporais em harmonia. Vai além! É outra forma de expressão e escrita que deriva e se incorpora à nossa língua raiz Tupi-Guarani para manter, com a desova, o contínuo enriquecimento do Português Brasileiro, cujo dicionário ontem abriu algumas páginas, oferecido e generoso, no palco iluminado do Palácio das Artes.

O Grupo Corpo não surpreende; encanta!

Ta pe-îu-katu!

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