Atletas barrados no baile

“Não há nenhum problema negro.
O que há apenas é um problema branco”
(Richard Wrigth, escritor negro estadunidense)
Confessando-se “assídua leitora” de meus textos, Palmira Nascimento, professora, comenta o artigo “O antirracismo entra em campo” (DC 15.12). “Gostei da crítica à praga do racismo.” Relembra, depois, narrativa que fiz, tempos atrás, sobre preconceito envolvendo atleta de basquetebol. Sugere repeteco do caso. Pedido acolhido. Os trechos do episódio narrado fazem parte do meu livro “Um Certo Dom”.
Início dos anos 60. O Palmeiras acabara de conquistar o sul-americano de basquetebol. O feito ganhou repercussão nacional. O Jockey Club de Uberaba, possuidor de imponente complexo destinado ao lazer e desporto, resolveu convidar o sexteto campeão para uma exibição em seu ginásio. Público vibrante compareceu à partida, fazendo coro com o Jockey nas homenagens prestadas na quadra.
À delegação ofereceu-se, depois, no salão de festas, um baile de gala. Só que com um porém. Numa demonstração de racismo, deu-se a conhecer que não seria permitida a presença no baile dos atletas negros. Eram dois. Um deles, principal astro, “cestinha do time”, conhecido por Rosa Branca (falecido em 2009). Ironicamente, o Rosa, chamado de branco, foi barrado no baile justamente por não sê-lo. O deplorável gesto foi acompanhado, da parte da comitiva do Palmeiras, de um ato de pusilanimidade. Os dirigentes e atletas brancos deixaram os colegas alvo da discriminação no hotel. Compareceram à festa, embasbacados com os rapapés, como se nada de singular tivesse ocorrido. Extrai-se daí uma medida exata da falta de sensibilidade social que, de forma talvez mais intensa que hoje, prevalecia naquela época nesses domínios perturbadores da convivência racial.
No diário “Correio Católico” e na Rádio Difusora o episódio ganhou críticas veementes. Os responsáveis pelo procedimento, tentando tapar o sol com peneira, contestaram as evidências. Veladas ameaças foram postas a circular. Falavam em eliminar do clube a “cambada de jornalistas”, todos “extremistas”, comprometidos com as denúncias. Alguns diretores do clube, mais sensatos, não só se opuseram à tresloucada ideia, como se animaram, oferecendo a mão à palmatória, a procurar o jornal e a rádio, pedindo desculpas pela besteira.
As ameaças motivaram o jornal e a emissora a desnudar outros aspectos dolorosos do problema da discriminação racial. Tudo quanto se fez, nesse trabalho de desmantelamento de imposturas, aceitas sem questionamentos por parcelas da comunidade, contou com o respaldo do Arcebispo de Uberaba, Dom Alexandre Gonçalves Amaral, que ocupou-se do assunto nos rodapés que escrevia diariamente no “Correio Católico”.
Levei a Dom Alexandre um registro incrível, revelador dos surpreendentes disfarces que a discriminação racial costuma utilizar, na tentativa de expor-se menos ao crivo da consciência social comunitária. Entre as manifestações de solidariedade figurou a de um dirigente destacado de outro clube. Cidadão muito simpático, trazia definidos na epiderme amorenada traços de sua ancestralidade negra. Ao cumprimentar-me efusivamente “pela corajosa atitude assumida no incidente Rosa Branca”, sublinhou que “em seu clube um absurdo desses jamais ocorreria.” Acrescentou, triunfante: “– Lá, não proibimos pretos de frequentar bailes. O que eles não podem é sair dançando. Cada um no seu devido lugar…”
Como diz o escritor mencionado no introito, fixando o assunto da segregação em seu enfoque correto, o que existe é apenas “um problema branco.”
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