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Copa do Mundo Feminina no Brasil: o machismo estrutural e como podemos construir uma nova narrativa

"A presença das mulheres no futebol é um ato de resistência e, no Brasil, país reconhecido culturalmente pela tríade 'cerveja, mulher e futebol', isso se torna ainda mais representativo"
copa do mundo
Crédito: Ueslei Marcelino/Reuters

Há poucos dias, tivemos a notícia de que o Brasil foi eleito para sediar a próxima Copa do Mundo Feminina, em 2027, e que será o primeiro país da América do Sul a receber a competição. Neste texto, proponho que façamos uma leitura interseccional do que representa esse acontecimento no nosso país, quais os atravessamentos em termos de relações de poder e, mais especificamente, em termos das questões de gênero estão por trás desse grande evento mundial e como as empresas devem se posicionar.

Em seu livro “Interseccionalidade”, Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge mostram como a Copa do Mundo da Fifa é marcada por relações de poder de raça, gênero, classe, nação, sexualidade, entre outros, que estruturam a organização desse evento.

Em termos da definição de qual nação iria sediar o campeonato, foi a primeira vez que a escolha da sede se deu por votação durante o Congresso da Fifa – nas edições anteriores, a escolha era feita pelo Conselho da entidade, formado apenas por 36 integrantes. O Brasil disputou com a candidatura tripla da Europa, formada pelos países Holanda, Alemanha e Bélgica, e venceu por 119 votos contra 78. Olhando interseccionalmente, acredito que o fato da escolha do país ter sido feita por votação democrática foi o principal motivo de um país do Sul Global conseguir vencer a tríade de países do Norte Global.

Em termos de gênero, o futebol feminino foi por muito tempo proibido no Brasil, devido ao impedimento imposto às mulheres na ocupação de determinados espaços. Foi somente em 1983 que a prática feminina do futebol foi regulamentada no nosso país a partir da atuação de mulheres em prol do direito feminino ao futebol. E, mesmo assim, de início, a decisão veio acompanhada de algumas adaptações recomendadas pela própria Fifa, tais como: redução do tempo de jogo, do tamanho do campo e do peso da bola, bem como utilização de protetores para os seios, decisões que asseguravam alguns padrões de feminilidade construídos socialmente.

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Com relação à Copa do Mundo Feminina, foi somente em 1991 que ela foi implementada, em contraponto à Masculina, que existe desde 1930. E, embora já tenha se passado 33 anos de seu início e sido realizadas 8 edições, a estrutura de desigualdade de gênero permanece uma marca no comparativo entre as duas competições. Em 2023, última edição dos jogos femininos, a disparidade salarial chegou a ser de 25 centavos ganhos pelas jogadoras para cada dólar recebido pelos jogadores. A composição salarial masculina é tradicionalmente composta por muito mais elementos do que a feminina; os prêmios são mais robustos. Há pouco incentivo para o treino as atletas; muitas delas têm de tirar licença não remunerada de seus empregos para poder competir; e outras tantas têm o futebol como apenas uma das fontes de renda e precisam complementar o salário com outras atividades paralelas. E isso se dá muito mais devido às questões culturais do que ao rendimento do campeonato, pois, com uma audiência estimada em mais de um bilhão de telespectadores, a Copa do Mundo Feminina é um dos maiores eventos esportivos do planeta.

Em termos de representação, como os esportes femininos rompem ostensivamente com antigos padrões esperados de feminilidade, há uma tentativa de controle do vestuário e da aparência das mulheres, que precisam negociar o tempo todo com anunciantes e audiência os traços de sua feminilidade sob o risco de não serem bem aceitas e nem sequer patrocinadas.

Muito embora os dados acima mostrem como a Copa do Mundo Feminina ainda é atravessada pelo machismo estrutural, é inegável a importância para nós, latino-americanos, da realização de uma copa feminina no nosso continente. A presença das mulheres no futebol é um ato de resistência e, no Brasil, país reconhecido culturalmente pela tríade “cerveja, mulher e futebol”, isso se torna ainda mais representativo.

Da parte das empresas, deixo a provocação de como elas irão se posicionar e apoiar esse grande acontecimento: desde ações externas de investimento, cotas de patrocínio, realização de eventos etc. até ação internas, como dispensar os colaboradores para acompanharem os dias de jogos do Brasil; fomentar a discussão da história do futebol feminino e o que essa Copa simboliza em termos de ganhos de representatividade para as mulheres; incentivar a prática do esporte em suas dependências; entre outras.

É importante que criemos uma tradição de valorização do futebol feminino no Brasil, assim como é feito com o masculino, pois a principal forma de diminuirmos as desigualdades de gênero existentes no nosso país é construindo uma nova narrativa. E lembre-se: não se posicionar também é se posicionar.

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