Finanças em Foco

Quando a renda não explica o comportamento financeiro

É preciso entender que a renda alta não garante organização financeira

Semana passada, atendi uma cliente que ganha R$ 80 mil por mês e outra que ganha R$ 5 mil. Adivinha qual comprou um imóvel à vista e qual está endividada? Pois é. Dinheiro importa – e muito – num país tão desigual. Mas renda alta não garante organização financeira. Então… o que determina a história que a gente escreve com o dinheiro?

O primeiro desafio é cultural. A antropologia lembra que consumir não é só “gastar com besteira”: é comunicar quem somos. Moradia, escola, plano de saúde, lazer… tudo isso cria pertencimento. Como vivemos na sociedade do espetáculo, as redes sociais viram arenas de comparação que moldam as nossas necessidades. A rotina vira vitrine. E, quando a vida vira vitrine, qualquer sugestão de “reduzir gastos” parece ataque pessoal. Supérfluo e essencial são definidos pela cultura, não pela matemática.

O segundo desafio vem da Economia Comportamental. Nosso cérebro é imediatista, impulsivo, emocional. O futuro quase não existe para ele. A gente decide no automático, odeia mudanças e usa atalhos para julgar a realidade. Cartão de crédito? É a nêmesis perfeita: anestesia a dor e incentiva decisões rápidas, sem reflexão.

Por isso mudar hábitos não é só “força de vontade”: é contexto. Fazer dieta numa casa cheia de fastfood é quase impossível. Com dinheiro é igual. Se tudo está disponível na conta, tudo parece acessível. Quem ganha 10 mil sente que “200 reais não fazem diferença”. Mas, quando o dinheiro já está comprometido, esses 200 reais podem consumir dois dias inteiros de trabalho. É outra percepção.

Kahneman dizia que existem dois “eus”: o experiencial, que vive o agora, e o recordativo, que constrói a história da nossa vida. Viver só para o presente faz com que a gente aproveite muito, mas construa pouco. E, no fim, o que nos faz felizes é a história que lembramos, não o lanche da sexta passada.
O papel de uma planejadora financeira é criar uma ponte entre esses dois eus: permitir que você viva bem hoje, mas também se orgulhe do caminho quando olhar pra trás. É desenhar uma narrativa possível, pé no chão, que reduz ruído e amplia presença.

E é exatamente isso que minhas clientes relatam. Quando o contexto muda, a culpa diminui, o prazer aumenta e o dinheiro começa a servir à vida, não à performance. Elas continuam viajando, comprando o que gostam, mas agora lembram dessas experiências porque deixaram de viver no piloto automático.
No fim das contas, sabe quem comprou o imóvel à vista? A cliente que ganha R$ 5 mil. Ela se percebe mais feliz que a cliente que ganha R$ 80 mil, não porque tem menos dinheiro, mas porque cuida melhor dele. Ela gasta de acordo com a própria realidade, não com o roteiro que o algoritmo escreve.

Eu deixo uma provocação: se você parar de comprar, o que sobra? O que sobra é você. E, quando a gente finalmente se encontra, a vida começa a fazer mais sentido do que qualquer coisa que o dinheiro possa comprar.

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