Dez anos de lama: por que o Rio Doce ainda está doente?
“O problema maior é o que a gente não vê”, nos disse o pesquisador Ângelo Fraga Bernardino, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em entrevista na semana passada. “A contaminação está presente no fundo do rio, nos sedimentos, mesmo com a água aparentemente normal.”
Nesta semana, em 5 de novembro, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), completa dez anos e a ferida na Bacia do Rio Doce permanece aberta. A lama despejada pela mineradora Samarco, controlada por Vale e BHP, percorreu 853 quilômetros até o litoral do Espírito Santo, levando rejeitos de minério e metais pesados que se depositaram silenciosamente no leito do rio.
Essa camada invisível de contaminação, como explica Bernardino, segue comprometendo a vida aquática e a segurança alimentar das populações ribeirinhas. O professor coordena uma rede de pesquisa que avaliou os impactos dos rejeitos na ecologia e na vida das comunidades da região costeira.
Segundo ele, os metais presentes nos sedimentos continuam sendo revolvidos por correntes, enchentes e marés, prolongando os efeitos da tragédia para muito além das margens de Mariana. “A cada chuva forte, arte do que está no fundo volta à coluna d’água. É um ciclo de contaminação contínuo”, afirma. Para ele, é preciso uma ação direta de descontaminação, ou seja, dragagem e remoção ativa de rejeitos.
Uma década depois, as mudanças na vegetação ao longo da bacia aparecem em várias pesquisas. Um estudo inédito conduzido por 19 autores de instituições nacionais e internacionais, como UFMG, University of Oxford (Reino Unido) e o Centro de Conhecimento em Biodiversidade constatou que os rejeitos alteraram profundamente a decomposição da matéria orgânica na floresta ciliar do Rio Doce.
É o processo de decomposição que transforma restos de plantas e animais em nutrientes que fertilizam o solo, sustentando parte da vida na Bacia. Outro estudo publicado esse ano na revista Anthropocene também mostrou a dimensão ecológica dessa destruição. Conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com instituições internacionais, o trabalho revelou uma queda de 50% na diversidade de espécies de árvores e redução de 60% nas mudas nas áreas atingidas pelos rejeitos. Essa perda altera a dispersão de sementes, reduz a fauna associada e compromete processos de polinização.
Apesar de tudo isso, o Rio Doce, ou Watu, como o chamam os povos Krenak, ainda resiste. Watu significa “Rio Grande” na língua Borum. Foi Ailton Krenak quem nos disse que o rio não é apenas um curso d’água, mas um avô, uma entidade viva na cultura desse povo. A destruição de suas águas é, também, uma agressão espiritual e cultural.
Hoje, lembrar o nome original do rio é lembrar que a restauração do Watu não é só técnica, mas também ética e simbólica. Recuperar a bacia do Rio Doce pede um compromisso real com a vida, com a justiça e com o tempo que a natureza precisa para se regenerar.
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