As múltiplas potências do Carnaval
Na Belo Horizonte da minha infância, o Carnaval se resumia ao desfile de algumas escolas de samba, na avenida Afonso Pena, e aos bailes organizados por clubes privados, como o Minas Tênis e o PIC. A Banda Mole também fazia um certo furor, mas logo as coisas voltavam ao seu ‘normal’. Todos costumavam dizer que a festa de Momo não combinava com a capital mineira e que só daria certo no Rio de Janeiro, em Salvador, em Olinda e em certos municípios do interior do Estado (sobretudo em Ouro Preto e em Diamantina). “Se quiser descansar nesse feriado, é só ficar na cidade”, era o que todos falavam. “A gente pode até deitar no meio da rua que não acontece nada”, emendavam outros. E assim a vida seguia.
Saíamos de casa e, de fato, não víamos muita gente. Havia alguma aglomeração apenas em frente aos cinemas (que saudades do Pathé!), quando eles ainda não estavam dentro dos shoppings. E nada mais.
Pouco atento ao tema, fui como uma ‘surpresa boa’ que vi o Carnaval de Beagá crescer e firmar-se, pelas próprias pernas. Até onde pude compreender, o fenômeno foi espontâneo, orgânico, passando ao largo das ações governamentais para nascer da própria população e de seu desejo genuíno de brincar e de ocupar o espaço público com música e alegria, na convicção de que ele não foi feito para o descaso e a violência, mas para a fruição coletiva. É certamente aí que reside o seu inegável sucesso, que já chamou a atenção de todo o País e até da imprensa internacional (a BBC inglesa fez matéria a respeito). Agora, artistas famosos, que só tinham olhos para os eventos já consagrados, já começam a aparecer por aqui, buscando o aplauso das multidões que passaram a frequentar BH…
Negócio milionário, o Carnaval movimenta a economia, gera emprego e renda, atrai turista. Sua incorporação ao calendário de eventos relevantes de Belo Horizonte é boa para todos. De grande potencial econômico, mas de forte caráter cultural e também político, é, igualmente, uma oportunidade para revelar ao mundo o nosso jeito de ser e de conviver, nossas preocupações e aspirações, as causas, os valores e as condutas que defendemos. Entra ano, sai ano, o Carnaval não deixa de ser, também, um momento de afirmação da nossa identidade, de manifestação artística, de resgate da memória e da História, e de vocalização de protestos e insatisfações. Afinal, a fantasia, a criatividade, a ousadia e o humor são ferramentas potentes para a representação de impasses e o enfrentamento de desafios.
O Carnaval é – ainda e finalmente – um acontecimento capaz de estabelecer um rico diálogo com outras formas de expressão, tão potentes quanto ele, como o teatro, a dança e até a literatura. Mais uma prova disso foi dada em 2024, quando vários enredos carnavalescos se basearam em obras literárias, algumas delas escritas por mineiros. Na capital fluminense, “Um defeito de cor” (Editora Record, 968 páginas), da excelente Ana Maria Gonçalves, de Ibiá, arrebatou a Marquês de Sapucaí, por meio da Portela, que se inspirou no livro para fazer o seu desfile. A Viradouro, escola campeã, também encontrou o mote para sua apresentação desse ano no excelente livro “Sacerdotisas voduns e rainhas do rosário – mulheres africanas e inquisição em Minas Gerais (século XVIII)” (Chão Editora, 192 páginas), organizado por Aldair Rodrigues e pelo competente professor Moacir Rodrigo de Castro Maia, natural de Mariana.
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