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“Tudo pode ser roubado”, de Giovana Madalosso

“Tudo pode ser roubado”, de Giovana Madalosso
Rogério Faria Tavares | Crédito: Glaucia Rodrigues

Uma das melhores escritoras brasileiras da atualidade, Giovana Madalosso nasceu em Curitiba, em 1975. Formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná, atuou como redatora publicitária por quinze anos. Sua estreia se deu com a coletânea de contos “A teta racional”, de 2016, finalista do Prêmio Literário da Biblioteca Nacional. Sua obra mais recente é “Suíte Toquio”, de 2020. Ambos ainda serão temas dessa coluna. Hoje, comento “Tudo pode ser roubado”, seu primeiro romance, editado pela Todavia, em 2018.

De Clarice Lispector, a epígrafe do livro já revela como se moverão as suas personagens: “Somos livres, e este é o inferno”. Tal é o espírito que parece reger as mentalidades e os comportamentos dos tipos criados por Giovana, a começar pela narradora, uma garçonete de prestigiado restaurante paulistano que dorme com alguns clientes – mulheres ou homens – para, no final das contas, furtar roupas, acessórios de grife e outros objetos de valor, que revende para um brechó de luxo, de propriedade de Tiana, uma mulher trans que se torna uma de suas melhores amigas.

Alguns capítulos ganham os nomes do que a garota subtrai: “Óculos Tom Ford”, “Blazer de paetê Laurence Kazar”, “Masbaha de madrepérolas” e “Abotoaduras Pierre Cardin”, entre outros. As últimas são tiradas de um líder religioso que a menina não sabia quem era, até recorrer a uma colega de trabalho: “Encosto na Lia e, apontando para o loiro, pergunto: sabe quem é? Você não sabe? ela diz. E quase rindo: é o Cafetão de Cristo. Estranho a junção das duas palavras, sigo sem entender quem é. A Lia explica que o loiro é o bispo de uma igreja evangélica, que ficou famoso na internet com um vídeo em que incitava os fiéis a doarem seus carros, dizendo que no fim do culto eles deveriam transferir o bem para o nome da igreja e voltar para casa a pé. Que colocando esse dinheiro no altar da igreja eles logo teriam dinheiro para comprar outros carros à vista”.

Os talentos da narradora são desafiados, porém, quando um misterioso sujeito, que a ela se apresenta como Biel, propõe o roubo da primeira edição do clássico de José de Alencar, “O guarani”, de 1857, a pedido de um milionário colecionador. O volume está em poder de um professor de literatura de uma faculdade privada de São Paulo e é esse excêntrico rapaz que a garçonete terá que seduzir para atingir o seu objetivo. Abandonado pela esposa depois de decidir comprar a raridade literária (ao invés de uma casa própria), Cícero admite a garota como aluna ouvinte de seu curso, e, pouco a pouco, vai cedendo aos seus encantos.

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De um humor cínico e corrosivo, o texto de Madalosso é ágil e inteligente, repleto de referências culturais, do mundo do consumo e da vida urbana. Sua escrita também é divertida, garantindo bom entretenimento e seduzindo rapidamente o leitor, convidando-o a ingressar num universo em que não há o bem ou o mal, e em que ninguém pode confiar em ninguém. E mais: em que ninguém conhece ninguém, de verdade, sobretudo numa megalópole em que os relacionamentos são fluidos, efêmeros, mas, principalmente, permeados por interesses bem concretos, longe de qualquer idealização.

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