“A pediatra”, de Andrea Del Fuego

Rogério Faria Tavares*
Autora de “Os Malaquias”, de 2010, vencedor do Prêmio José Saramago, e “As miniaturas”, de 2013, Andrea Del Fuego também escreve contos e histórias infantojuvenis. Sua obra já foi traduzida para vários países. Seu novo livro, “A pediatra” (Companhia das Letras, 159 páginas), apresenta como protagonista uma médica que odeia crianças, mesmo havendo se especializado no tratamento delas.
É marcante o modo como tal personagem descreve suas atitudes profissionais: “Ninguém notava que eu tinha pouca vocação e paciência para ser médica, a boa formação garantia que eu não fosse processada, fazia bem feito o feijão com arroz, procedimentos que qualquer pediatra faz escondiam minha inaptidão. Meu caso é comum, estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme. Não é diferente de quem cuida de vacas porque de sua janela era o que havia, festejando o fato de que não era mais preciso caçar, apenas manter o gado”.
Esse comportamento é o mote para que o romance aborde questões centrais na sociedade contemporânea, como as responsabilidades dos agentes de saúde, o papel da mulher e a maternidade, chegando a abordar assuntos como o parto humanizado, o parto domiciliar, a figura das doulas e a medicina alternativa. Ainda que toque em pontos extremamente sérios e importantes, a escritora não abre mão de um humor ácido e refinado, seduzindo os leitores da primeira à última linha, e oferecendo, ao mesmo tempo, reflexão de qualidade e entretenimento de alto padrão.
Narrado na voz de Cecília, a obra mostra uma personagem em permanente atrito com o seu entorno, desgastada por um casamento infeliz e, pouco tempo depois, refém de um relacionamento com um homem casado, Celso, que logo a convida para ajudar no parto de seu filho, proposta aceita de imediato, sem qualquer constrangimento.
Em linguagem direta e crua, sem rodeios, a pediatra conta, impiedosa, como atuou no final do procedimento: “A mulher de Celso exibia uma laceração de segundo grau no períneo, o sangue da lesão se misturava ao do parto, empapando o lençol. Não entendi por que a obstetra arrumou o soro e precisou sair da sala. Me sentei diante da vagina que recebia o mesmo pau que eu, agora rasgada pelo primogênito. Ela estava em outra órbita, drogada de hormônios, Celso também saiu da sala, provavelmente porque viu a amante costurando a vagina de sua esposa. Sentada no banco, dei mais pontos que o necessário. Por pouco não a fechei”.
Também chama bastante atenção a animosidade com que Cecília se refere a um colega de profissão, tido como um ‘pediatra humanizado’ e contra quem nutre os piores sentimentos, lamentando sempre a perda de espaços e de clientes para ele. Suas críticas ao discurso de Jaime percorrem todo o livro, como neste trecho em que o rapaz faz uma palestra para mães: “As grávidas, assim que o ouviam falar, afrouxavam.
A voz fraca me pareceu propositada, também podia amenizar a agressividade das panturrilhas de homem caçador, era um tom sonífero. O parto não é performance médica, ele disse, cesárea só em último caso. As grávidas mal se mexiam diante de Jaime, fiquei irritada por ele evitar cesárea a todo custo, como pediatra ele devia cuidar da área dele.”
- Jornalista. Doutor em literatura. Presidente emérito da Academia Mineira de Letras
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