VIVER EM VOZ ALTA | “Solitária”, de Eliana Alves Cruz
ROGÉRIO FARIA TAVARES *
“Solitária” (Companhia das Letras, 161 páginas) é o terceiro romance da escritora e jornalista carioca Eliana Alves Cruz. Antes vieram “Água de Barrela” (2015), “O crime do cais do valongo” (2018) e “Nada digo de ti, que em ti não veja” (2020), os três voltados para a temática da escravidão no Brasil e as relações sociais daí decorrentes. Em seu mais recente livro, a autora mostra o quanto o assunto continua atual e o quanto ele ainda é capaz de marcar o modo como lidamos uns com os outros.
A primeira parte do volume tem o nome da narradora, a jovem Mabel, e se divide em capítulos nomeados a partir dos espaços do luxuoso edifício Golden Plate, onde reside a família de dona Lúcia, para quem trabalha Eunice, mãe da menina: “piscina”, “cozinha”, “escritório”, “portaria”, “salão de festas”, “quarto do bebê”, etc. A frase que abre a história é um apelo: “- Mãe… a senhora precisa se libertar dessas pessoas… A senhora não deve nada a elas, pelo contrário. Mãe… Sou eu, a Mabel, a sua filha. Não tenha medo de encarar esse povo que nunca limpou a própria privada!”.
A segunda parte segue a mesma lógica na titulação dos capítulos (“sala de estar”, “área de serviço”, “salinha”, etc). Quem fala, no entanto, é Eunice, dando aos leitores a chance de conhecer um pouco a sua voz, depois de escutar a de sua filha, na seção anterior da obra. Finalmente, na terceira parte, quem narra são os próprios espaços, que, numa bela evocação da obra de Carolina Maria de Jesus, ganham os nomes de “quarto de empregada”, “quarto de porteiro”, “quarto de hospital” e “quarto de descanso”.
Em linguagem clara e precisa, num estilo direto e descomplicado, acessível a público amplo, a história seduz os leitores desde o começo, eficiente em mostrar a realidade de grande parte dos trabalhadores domésticos brasileiros que, por muito tempo, viveram (e ainda vivem) em terríveis condições para exercerem suas funções – como, por exemplo, a de habitarem as famosas “dependências de empregada”, geralmente locais minúsculos e sem ventilação, quando não insalubres, como se lê à página 139: “Todo quarto de empregada é próximo à grande lixeira da casa, porque está sempre no fundo do profundo do imóvel. Nós, os ‘quartinhos’, estamos sempre perto dos odores da vida das pessoas que não nos habitam. Perfume francês, patê de fígado de pato, vinho caro, trufas, papel higiênico, absorventes, suor. Quase tudo era deles”.
Retrato fiel e detalhado de certo contexto sociocultural do país, “Solitária” ainda apresenta outros personagens fascinantes, como o porteiro Jurandir e seus filhos Cacau e João Pedro e o impagável General Feitosa: “O velho morava sozinho, e quem cuidava dele era a enfermeira Hilda, a quem os filhos pagavam um salário muito acima da média para que tivessem que conviver o mínimo possível com o pai. O general era uma espécie de lenda no condomínio. Diziam que já havia torturado, matado, prendido…”. Outro personagem marcante – que só aparece no final – é o “quarto de descanso”: “Não há paz enquanto se habita o tumultuado quarto de despejo – seja ele real, seja metafórico. O silêncio da solitária é um estrondo, uma trovoada de desprezo que não para de soar na cabeça e na alma. (…) Foi com a consciência muito atenta a esse fato que Mabel e Eunice finalmente me deixaram chegar em suas vidas. Não o quartinho de despejo, mas o de descanso”.
*Jornalista. Doutor em literatura. Presidente emérito da Academia Mineira de Letras
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