Coronavírus e Salmo 77

Tilden Santiago*
“Quando a situação for boa, desfrute-a. Quando a situação for ruim, transforme-a. Quando situação não puder ser transformada, transforme-se”. Três conselhos do psiquiatra judeu Viktor Frankl(falecido aos 97 anos em 1977), que sobreviveu após ter enfrentado um campo de concentração de 42 a 45. Sábios conselhos de quem viveu a maldade humana ao extremo e não perdeu a utopia de mudar o mundo.
No meu entender, mesmo com a pandemia, ainda não se abriu a possibilidade de mudar a realidade do mundo e do Brasil. Os tempos não são propícios a uma revolução. É um erro político e ético deixar de “transformar”. Mas é um erro também pregar a revolução em condições impossíveis de realizá-la.
As multidões excluídas e oprimidas da humanidade não estão unificadas para um clamor efetivo, na caminhada libertária global. E por outro lado, o mundo hoje é governado por “sociopatas bufões”, como demonstrou Noam Chomsky, a começar pela nação, que comanda o Ocidente e o mundo, EUA. Chomsky diz, com termos eruditos, que somos governados por loucos e palhaços, por malucos… É gravíssimo!
O fato é que não caminhamos para tempos propícios a uma “real revolução” no mundo, como aconteceu na Revolução Francesa, na Independentista de Bolívar, na Americana contra a Inglaterra, na China, em Cuba, na Rússia e no Vietnã. Só nos resta o terceiro conselho de Viktor Frankl: “Transforme-se”.
Mas como? A meu ver, mudando nossas relações: com os outros, com a natureza, com Deus, consigo mesmo. O Salmo 77 e o capítulo 40 do profeta Isaías, o profeta evangelista, podem nos ajudar nessa empreitada, tenhamos crença espiritualista ou não.
Aliás, esse escriba escreve pensando mais nos agnósticos e ateus do que nos irmãos e irmãs de todas as religiões. Até porque muitas crenças abstratas, alienadas e alienantes, também são responsáveis pelo malaise du monde (Freud) e pelas desigualdades entre indivíduos e classes sociais (Marx).
É bom distinguir o Salmo 77 em cinco partes, para entender melhor sua mensagem (distinguer pour comprendre, ensinava o sábio filósofo Jaques Maritain):
1) O ser humano, que vive no tempo (frequentemente tempos aflitivos, na grande tribulação) deve clamar e gritar e o Eterno escutará… “Dia e noite relembro-me de Deus e gemo” (Sl 77,4).
2) O foco principal da mensagem é perguntar ao Eterno se a rejeição d’Ele é para sempre: “Nunca mais serás favorável? Desapareceu tua fidelidade, tua misericórdia? A palavra se calou pelos séculos? Esqueceu-se de dispensar a graça? Encolerizado, fechou seu coração? Deus mudou? Mudou a dextra do Altíssimo? Minha fraqueza vem daí – reconhece o ser mortal”. (Sl 77, 8 a 11). É um reconhecimento de nossa contingência: somos criados no tempo e não Criador eterno, que cria o que existe garantindo subsistir.
3) Na terceira parte, o salmista lembra a libertação do Egito, como símbolo da libertação da Humanidade. Ele parte para a história no seu passado judaico, simbólico. Agora o foco é a relação de Deus com o povo e a Humanidade, dentro do processo histórico: “És Deus tão grande que fizeste o milagre, mostrando sua força entre os povos, libertando com seu braço, o seu povo, os filhos de Jacó e de José (Sl 77, 12 a 16). Algo emblemático para os povos de todos os tempos e lugares.
4) Aqui o salmista reúne o Homem, Deus e a Natureza – todos juntos numa restauração não só histórica, mas do Universo. Faz questão de ressaltar concretamente a natureza, quase personificando suas expressões – águas, nuvens, abismos, o ribombar do trovão, o clarão dos raios, que iluminam o mundo, a terra que estremesse e treme (Sl 77, 17 a 19).
5) Na conclusão o salmista reconhece que Deus abriu o nosso caminho libertário, a nossa passagem nas águas profundas, mas ninguém conseguiu conhecer o seus rastros, as suas pegadas. Deus é invisível. Por isso ele guia o povo, como um rebanho, pela mão de Moisés e de Aarão (Sl 77, 18 a 21). Nessa quinta parte, o hagiográfico (e o Eterno através dele) condena crenças abstratas, alienadas e alienantes, que, em tudo dependem só do criador com seus milagres e destaca que Deus age, sim, mas através dos homens, dos líderes que pastoreiam e conduzem a Humanidade espiritualmente e politicamente. Somos todos Moiseses e Aarãos – agentes históricos.
Coronavírus, isolamento social, confinamento são convites para meditar e planejar projetos de libertação, que nascem de nossas mãos humanas e da compaixão do Criador, que tudo permite acontecer na terra e no Universo de bom e de mau.
*Jornalista, embaixador e sacerdote anglicano
Ouça a rádio de Minas