EDITORIAL | Brincando com fogo

Em artigo publicado no “Globo” domingo passado, o jornalista Fernando Gabeira diz sentir em Brasília um “cheiro de queimado” que parece não estar sendo devidamente percebido, mas o preocupa. O jornalista foi bastante feliz ao utilizar esta imagem para falar dos distúrbios acontecidos na Capital Federal desde o final da votação presidencial em segundo turno e que culminaram com tentativa de invasão da Polícia Federal, badernas e quebradeiras na região central da cidade. De fato, o cheiro de queimado persiste e assusta, principalmente por não serem vistos sinais de bombeiros prontos a atuar com legitimidade e a necessária competência. Foi justamente a tolerância que abriu espaços, mais que para abusos, para crimes que agora chegam a se confundir explicitamente com terrorismo.
Essa delicadíssima situação, em que não há por que desconsiderar a possibilidade de que ainda existam brasas que podem provocar novos incêndios, evidentemente não será dada por encerrada com a passagem do calendário e a posse do novo governo, até porque ficar tudo pelo dito e pelo não dito implica no risco maior de perpetuação da instabilidade. Nessa medida, já não interessa tanto determinar qual é o fôlego dos ditos “patriotas” que entendem sua vontade como único direito legítimo, até mesmo porque a cobertura que lhes seria essencial felizmente parece não existir.
O problema merece ser avaliado, nos lembrou Gabeira, numa outra perspectiva, a dos vencedores, que parecem não se dar conta da realidade, que preparam a posse como se tudo fosse festa, apenas festa. Atitude das mais imprudentes, além de sugerir que os revezes passados não lhes foram úteis como aprendizado. Nesse pacote cabe um pouco de tudo. Nele incluiríamos os movimentos da transição, as alianças costuradas segundo as mesmas regras de sempre ou até escolhas para postos-chave, sugerindo que competência continua sendo critério de pouco peso. Tudo como se nada tivesse acontecido ou ainda acontecendo, como se não houvesse uma ameaça latente, aquele “cheiro de fumaça”, tudo isso tendo como pano de fundo um desequilíbrio estrutural, tanto na gestão como nas contas públicas, rigorosamente sem precedentes.
Nada enfim que possa ser varrido para debaixo do tapete ou entendido com uma falsa ideia de normalidade. Novamente recorrendo a Fernando Gabeira, parece estar no ar também aquela ideia bem brasileira de que ao fim e ao cabo tudo se arruma, se ajeita sem maiores problemas, bastando alguns favores e nenhuma memória. Mas permanecerá o “cheiro de fumaça” como a nos lembrar que o fogo pode estar muito perto.
Ouça a rádio de Minas