Opinião

Entre a cruz e a espada

Entre a cruz e a espada

Sob as promessas de uma deleitosa vida no paraíso, muitos homens se entregaram a combates mortíferos nas Cruzadas. Em oito incursões, de 1095 a 1291, estima-se que entre 1 a 3 milhões de vidas foram ceifadas. A um preço inestimável, as Cruzadas tiveram importantes impactos na Europa: recrudesceram os ressentimentos entre cristãos e mulçumanos e ensejaram uma reabertura do Mediterrâneo ao comércio internacional.

Encontramos ao longo da história outros exemplos – todos lamentáveis – de Guerra Santa. Nem Freud explica a contraditio in terminis nessa alcunha, como se pudesse haver algo de santo em batalhas mortais recheadas de ódio e rancor inflados por líderes gananciosos.

Já bastante distantes da era medieval, mas em atmosfera de acirrado conflito, encerramos recentemente o primeiro turno das eleições presidenciais, cuja campanha foi marcada por posições dotadas de fortíssima carga emocional. Notável a polarização que tensionou laços familiares, desafiou a força de amizades e esgarçou a tessitura social. Entre o eloquente silêncio da apatia de muitos – responsáveis pelos milhões de votos em branco e nulos – e o radicalismo de poucos em ambos os extremos, nossa sociedade resiste.

Em ambos os discursos, o capitalismo exsurge, às vezes como salvador, noutras vezes como causa de todos os males. Em meio a debates simplórios, de ideias escassas e rasas, onde demagogia, populismo e ofensas disputam proeminência, o capitalismo é rotulado em discursos ideológicos extremados e carentes de reflexão, servindo de objeto e palco à “Guerra Santa” assistida nos debates.

Adotado em inúmeros países, o capitalismo é conceitualmente um sistema de produção lastreado na propriedade privada e na liberdade de iniciativa, num contexto de livre mercado regido pelas leis de oferta e demanda. Embora haja exceções, é baseado nos direitos individuais. Em suas diversas matizes, habitualmente ignoradas nos discursos eleitorais, o capitalismo pode estar mais ou menos regulado pelo Estado.

Os adeptos de uma visão mais conservadora – ou liberal – usualmente se apegam ao adágio de que o Estado distorce as leis de mercado reduzindo sua eficiência. Busca-se firmar como um axioma a crença de que o mercado é mais sábio e que a intervenção estatal deve ser mínima. No entanto, não há capitalismo sem Estado. Mercados não existem no vácuo. Onde não houver propriedade privada, livre iniciativa para empreender, contratos e segurança jurídica não haverá mercado. O Estado proporciona as condições estruturantes do sistema produtivo.

Em meio à polarização exacerbada, mercado e Estado são frequentemente acantonados em extremidades opostas como se realizassem papéis totalmente independentes ou, pior, antagônicos. Como muito bem demonstra Jean Tirole, estudioso francês vencedor prêmio Nobel de Economia (2014), “Mercado e Estado não competem entre si e, na verdade, cada um deles precisa que o outro atue de forma adequada”. Muito mais do que uma relação antagônica, entre ambos deve existir uma genuína relação de simbiose.

Há uma dependência mútua que deveria redundar numa relação cooperativa, longe dos discursos de oposição, rivalidade, rancor e ódio que marcaram o século passado e exploram a ignorância e os preconceitos dos eleitores. Mercado e Estado são agentes e forças complementares que devem se apoiar reciprocamente.

Mercado sem Estado rapidamente se dissolveria em anarquia. Negócios precisam de regras e segurança – jurídica, psicológica e física. Contratos e acordos precisam ser cumpridos e, para tanto, a coercitividade provida pelo Estado é imprescindível. Por sua vez, Estado sem Mercado não se sustenta. É ingênuo o mito do Estado grátis. Tão ingênuo quanto achar que o Estado pode resolver todos os nossos problemas. É dos tributos, incidentes sobre atividades econômicas, que se viabiliza manutenção estatal. Quanto melhor o desempenho do mercado, mais inovação e desenvolvimento, maior a arrecadação e maiores as chances do Estado atingir seu fim precípuo: a promoção do bem comum.

Em seu livro Saving Capitalism (2015), Robert B. Reich, denuncia que em sua versão atual, o capitalismo tende a ser um sistema que beneficia poucos às custas de muitos. Reich busca explicar as causas dessa tendência, bem como, numa abordagem propositiva, apresenta propostas para seu aperfeiçoamento. Para tanto, aponta o autor que a classe média precisa reagir, econômica e politicamente. Ao demonstrar que os desejos do cidadão comum têm um peso praticamente nulo na aprovação das leis, resgata a importância do exercício efetivo da cidadania.

Que essa consciência possa fazer-se presente no desfecho da disputa eleitoral de 2022. Independente da colocação de cada candidato, que vençam a democracia e a cidadania. E, com essas bases estruturantes fortalecidas, que o capitalismo evolua como elemento de transformação apto a contribuir decisivamente para um mundo melhor.

Rádio Itatiaia

Ouça a rádio de Minas