Gratuidade e sustentabilidade

Trocando ideias sobre gestão e desenvolvimento sustentável com a editora executiva do DIÁRIO DO COMÉRCIO, Luciana Montes, veio à baila o filósofo, psicanalista e professor holandês Karel Frans van den Bergen. Mente brilhante do pensamento contemporâneo, hoje com 103 anos e infelizmente senil, vive em Brumadinho (MG). Foi quem trouxe à ArcelorMittal Tubarão a sustentabilidade em 6 dimensões. Por que um professor universitário se interessaria em colaborar, gratuitamente, com a visão de uma empresa que sequer conhecia, sensibilizando-se com um de seus executivos que, acidentalmente, acabara de conhecer?
Estaria ele irradiando conhecimento por estar feliz com suas escolhas e consigo? O que move pessoas que se comprazem em fazer o bem pelo bem, sem oportunismo político, interesse estratégico ou desejo de lucro? Seria esta a fórmula da felicidade autêntica? Curiosamente, a parte central do modelo proposto pelo filósofo trazia a dimensão Espiritual, em cujo entorno orbitavam as demais (Ambiental, Social, Econômica, Cultural e Política). Um lembrete: as religiões e a fé entram na esfera das crenças, na dimensão Cultural.
Praticava o professor Karel o próprio modelo que defendia, ao constatar – através da visão holística e da racionalidade da dimensão Espiritual – que ajudando ao mundo indiretamente estaria ajudando a si próprio e a seu ecomapa – diante da expectativa por uma empresa comprometida com ideais mais amplos e humanos, inclusive fora dos muros corporativos? Quem sabe, ele não estaria praticando o bem acreditando na reciprocidade de um universo infinito e ainda tão distante do conhecimento humano?
Ou ainda, por ser um homem pleno em seu autoconhecimento, não estaria manifestando o prazer de uma vida repleta de significado, curiosidade e sabedoria através da solidariedade e do amor que nos permitem descobrir-nos individualmente partícipes de uma fraternidade institucional e universal? A individualista cabeça do século XXI duvida de um gesto como esse. Soa incômoda essa iniciativa do filósofo… Tão estranha, inclusive, quanto um país que estende uma bandeira preta pela posse de um novo presidente, mas não a hasteia quando – o mesmo país – contabiliza quase 700 mil mortes por má administração de uma pandemia.
Quanto a Karel, ele fez da gratuidade sua moeda de troca, em um mundo de pessoas indiferentes à dor do outro, mercados gananciosos, empresas muito lucrativas e pouco distributivas, governos corruptos e de um amor ao próximo de homilias vagas, muito longe do cotidiano. Seria eleum ‘viajante do tempo’ – como nos filmes – que driblam a cronologia e tentam tornar o futuro viável, quando a escassez generalizada exigir das novas gerações um tardio comprometimento para com o desenvolvimento sustentável diante dairresponsabilidade ancestral?
Ou nosso filósofo candidatar-se-ia a um ‘cavaleiro da luz’, desses prometidos pela literatura mística como heróis do Apocalipse, com propostas para a expansão da antevisão nas gestões, da inteligência multidimensional e da maturidade ideológica? Tudo isso soa utópico diante de um mundo fiel a um destino inexoravelmente triste, por simples incapacidade de mudar. Elucubrar sobre o Karel como um caminho atitudinal promissor, em tempo de letargia e indiferença, parece subproduto ingênuo da resenha poética entre uma editora vanguardista e um articulista, frente a um planeta resistente até em fechar um acordo significativo para redução de impactos durante uma conferência de clima.
Mesmo com a água muito perto do nariz ou cada vez mais longe da boca. Com a desigualdade elevando a violência à categoria de regra – e não mais exceção. Ou, talvez, tendo a guerra como única alternativa à instabilidade político-econômica global. Felizmente, como o filósofo sempre se revelou otimista até quanto à iminência da própria finitude, enquanto não habitamos – e destruímos – a lua, deixemos serpentear pela aridez espiritual da Terra um débil curso de esperança por mais Karels e menos Putins.
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