Herança política polêmica
Tilden Santiago*
Miguel Arraes de Alencar continua a suscitar polêmicas na política brasileira contemporânea. Os veículos de circulação nacional voltam a divulgar editoriais e reportagens sobre Miguel Arraes e as marcas que ele deixou na história do Nordeste e do Brasil, com presença, inclusive, na Argélia, na França e na Europa. É normal que não se perca na noite dos tempos a memória de um personagem que soube ser “homem de palavra” do sertão e “guerreiro ousado” na política, no poder e fora dele, na vida e no amor.
Arraes nos ensinou a todos, que dele nos aproximamos, que a luta social e política é uma guerra, no combate a ser enfrentado com coragem e pertencimento a um de seus exércitos, os partidos políticos. Coragem de abraçar a causa da justiça na sociedade com sensibilidade para os pobres e oprimidos. Por isso foi um profeta do sertão e do Nordeste.
A primeira notícia que tive de Arraes foi durante meu exílio pátrio que durou de 1960 a 1966. Quando aconteceu o golpe de 64, esse escriba morava no bairro muçulmano de Babel Hutta, em Jerusalém, trabalhando como soldador e serralheiro entre palestinos e jordanianos, fora das muralhas.
Início de abril, voltando pela tarde para Jerusalém, cheia de turistas e de fiéis que a ela subiram pela festa da Páscoa, encontro na porta de Damasco, o amigo Assad (Leão), um árabe certamente descendente dos Cruzados, loiro de olhos verdes, que me aborda “Youssef, ontem no nosso amado Brasil, aconteceu uma Revolução de Marinheiros e em Pernambuco, o IV Exército cercou o Palácio das Princesas e prendeu nosso amigo, o então governador Miguel Arraes”.
Apressei o passo, fui para casa dentro das muralhas, liguei o rádio para ouvir a BBC de Londres, Voz da América e Voz de Moscou. Ouvi as três diferentes interpretações ideológicas e cheguei à conclusão de que um golpe militar fora dado. E a confirmação da prisão de Arraes no 4º Exército.
Em 1968, troquei Vitória (ES) e o Sul industrial pelo Nordeste, o mundo rural da Paraíba e uma fiação tecelagem do Recife. Quatro anos depois do golpe, qual não foi minha surpresa: operários recifenses e rurais paraibanos falavam de Arraes como um ídolo e como um pai da pátria. E ele continuava exilado na Argélia, longe dos pobres nordestinos, no convívio de uma pátria rebelde, que se revoltou contra a perenização do colonialismo francês.
Em primeiro de fevereiro de 1991 chegamos a Brasília e tomamos posse juntos, como deputados federais, no Parlamento brasileiro, juntamente com o futuro presidente Bolsonaro, José Serra, Jaques Wagner e outros nordestinos seus conterrâneos.
Minha amizade com Arraes e nossas “échanges” sobre política e economia, sobre o Brasil e o mundo nasceram graças a seu chefe de gabinete, Carlos Siqueira, presidente nacional do PSB e de uma amiga comum, a advogada Stael. Passamos a discutir política brasileira e os rumos do socialismo no mundo. Sabendo que esse escriba vivera com os palestinos, sempre que visitava diplomatas, especialmente árabes, era convidado a acompanhá-lo nas embaixadas.
Já faz parte da história da política brasileira e nordestina esse legado familiar de poder e sabedoria política a partir de Miguel Arraes. As reportagens agora ressaltam, mas não são poucos os homens políticos desse País, entre os quais esse escriba que transpiram a visão política e humanitária de Arraes, sem ter o seu DNA.
Arraes sabia fazer amigos e companheiros e amava sentar com os mesmos, falar de política e do povo nordestino e brasileiro. Falava com carinho dos colegas políticos mineiros e da política de Minas, mesmo se diferenciando frequentemente e ideologicamente da maioria deles. Tinha sempre um olhar democrático para os homens públicos de todas as unidades da federação, mesmo os intrépidos adversários.
Não foram poucos os líderes no mundo que souberam conciliar a busca existencial da alegria e do prazer com os gestos agressivos e às vezes irritação pessoal de uma personalidade forte, com a ira de quem zela pela justiça. Miguel Arraes foi certamente um deles.
*Jornalista, embaixador e sacerdote itinerante.[email protected]
Ouça a rádio de Minas