Opinião

Lembranças de Mário Palmério

Lembranças de Mário Palmério
CRÉDITO: ALISSON J. SILVA

Cesar Vanucci *

“Chamemos de gênios homens que fazem depressa o que nós fazemos devagar.” (Joubert)

Dias atrás, anotei neste – como diria Roberto Drummond – “minifúndio de papel”, o relançamento festivo de “Vila dos Confins” e “Chapadão do Bugre”, duas obras-primas do romance brasileiro. O fato estimulou-me a trazer das ladeiras da memória lembranças de minha convivência com Mário Palmério. Falemos primeiro do cidadão. Do romancista, depois.

Naqueles tempos do Liceu do Triângulo Mineiro, a escola era risonha e franca. Numa manhã brumosa de agosto, tiritando de frio, vestimenta resumida a calção, camiseta e tênis, a turma da “pá virada” da 3ª série “A” aprontou uma boa na ginástica. Incentivou a extremos a peraltice do Carlos Alberto Moura, que chegara atrasado e se escondera atrás das árvores do pátio do recreio, para que imitasse os gestos do instrutor. O “show” improvisado provocou estardalhante riso. O instrutor deu pelo pândego já em retirada, o passo apressado, não o suficiente para que deixasse de ser agarrado pela gola. Na sala do diretor, a vigorosa preleção, as explicações insuficientes e o inevitável pedido coletivo de desculpas. O tom de voz de Mário Palmério lembrava fúria de leão na admoestação e mansidão de boi na conclamação apaziguadora. Desfez-se o clima para futuras imitações.

O vídeo da memória transporta-me agora para o primeiro trote de calouro aplicado na Faculdade de Direito. Não foi bem um trote. Um júri simulado substituiu o grotesco espetáculo das penalizações físicas. Nos papéis de “promotor” e “assistente de acusação”, funcionaram o locutor que vos fala e o Gabriel Palis, primeiro lugar absoluto em todas as matérias desde o jardim de infância. Palmério, com méritos incontestáveis, classificou-se em primeiro lugar no vestibular. O Gabriel ficou em segundo e eu em quarto. Maliciosamente, no “libelo acusatório”, o “promotor” assegurou ao “conselho de sentença” que o “caso em julgamento” caracterizava “delito grave”, tão grave quanto o “praticado” pelo deputado Palmério com o resultado no exame de admissão da escola de que era dono. No gabinete do diretor Lauro Fontoura, humanista e poeta, foi feita uma avaliação do “trote”, marcado também por outros registros críticos aplicados ao cenário citadino. Tudo terminou em tiradas de humor, outro terreno em que o escritor, presente à reunião, se mostrava imbatível.

O PTB de Palmério empolgava a universidade. Costumava fazer, como então se dizia, “cabelo, barba e bigode”. Elegia de juiz de paz a deputado. Os estudantes participaram ativamente da campanha que elegeu o ilustre professor Jorge Furtado prefeito de Uberaba. Colaborei com Palmério na “bolação” do “slogan” que, como se passaria a dizer, “estourou a boca do balão”. “O Prefeito deve ser Furtado, o povo não”.

Um cidadão com o dom do toque providencial. Era por a mão e fazer funcionar. Os empreendimentos ganhavam corpo e os resultados brotavam. Junto com Dom Alexandre Gonçalves Amaral, que atuava em outra vertente educacional e assistencial, Palmério foi responsável pela mais importante revolução cultural que Uberaba viveu. Como aconteceu com o sábio e desassombrado Bispo, enfrentou a ira rançosa de grupos que, no campo das ideias, se achavam ainda nostalgicamente ligados ao século 18. A universidade, nessa visão distorcida, era um covil anárquico, uma ameaça aos bons costumes. As mesmíssimas pessoas colocavam-se em nível mental tão obtuso que chegavam a considerar despropositada a ideia da implantação na região de uma unidade do Exército, sob a incrível alegação de que já existia uma unidade da Polícia Militar e a presença das duas guarnições “poderia” provocar conflitos danosos à tranquilidade pública, ora, veja, pois!

Palmério enxergava longe e tinha pressa. Enquadrava-se na definição de Joubert. Poderia, certamente, ter realizado voos condoreiros nos altiplanos da política, caso não se desencantasse, fora de hora, da atividade parlamentar. Embaixador, conquistou a simpatia popular paraguaia. Com poucos meses de Assunção, era apontado nas ruas como celebridade. Também pudera! Suas guarânias frequentavam todas as paradas. E continuam frequentando.

Quando se candidatou a Prefeito, com proposta administrativa bem articulada, defendi, com outros, a tese de que a chance era única para a utilização de sua experiência e prestígio. A facilidade que tinha para contatar pessoas influentes capacitava-o a operar prodígios como administrador. O resultado das urnas foi adverso às suas pretensões e à bem intencionada tese. De outra feita, Palmério procurou-me, com uma ficha de filiação partidária, para que meu nome pudesse ser lançado, com o seu apoio, candidato a deputado. Custou-me convencê-lo de que não era o caso, nem a hora, nem a vez.

Na última vez em que papeamos, em Monte Carmelo, sua terra natal, onde o Centro de Atividades do Sesi ganhou o nome do educador e romancista, ficou de assinar o prefácio de um livro meu. Não foi possível cobrar-lhe o compromisso. Por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa. Os originais não chegaram a tempo. O genial romancista partiu antes. Foi partilhar, noutro plano da existência, da convivência de outros craques na arte de contar histórias. Guimarães Rosa, com toda certeza, entre eles. Ponho-me a imaginar, às vezes, o que não estariam produzindo, ambos os dois, a quatro mãos, em matéria de boa prosa regionalista com vistas a inclusão na grande enciclopédia cósmica.

* Jornalista, presidente da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais ([email protected])

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